Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-fim-da-tarde.html antes
de ler esta postagem:
Observar o céu, e lembrar-se de considerar que
para os demais povos o firmamento era um, só levou Winston a lamentar o fato de
todos padecerem da mesma ignorância. Provavelmente milhares de milhões sequer
imaginavam que tipos semelhantes a eles levavam uma vida parecidíssima com a
que suportavam... Jamais interagiriam com os estrangeiros, pois desde a
infância recebiam incessante propaganda mentirosa que os levavam a odiá-los. De
modo algum podiam pensar com autonomia e exatamente por este motivo nutriam
apenas o sentimento de devoção à pátria e aos líderes.
Mais uma vez Winston
concluiu que somente entre os “proles” poderia despontar algum movimento que
pudesse trazer a esperança de renovação. Apesar de não ler o “livro proibido”
até o fim tinha certeza de que a mensagem de Goldstein só podia ser essa. Os
“proles” determinariam a organização futura... Seria o caso de pensar se também
estranharia o que estava para vir do mesmo modo que se sentia deslocado na
realidade que era estruturada pelo Partido.
(...)
Esperava que ao menos a novidade trouxesse o igualitarismo e, com ele, a
“sanidade mental”. Tomando por referência a mulher que estendia fraudas no
varal só podia pensar que “os proles eram imortais” e que cedo ou tarde a
renovação ocorreria. Podia ser que demorasse, mas eles estariam firmes e, como
os pássaros, continuariam a transmitir “a vitalidade que o Partido não possuía
e não podia matar”.
(...)
Essas reflexões o remeteram
à pequena ave do bosque onde se encontrara com Júlia... Perguntou-lhe se se
lembrava do tordo que havia cantado para eles. A moça respondeu que não era
para eles que o pássaro havia cantado, pois devia apenas estar se distraindo,
ou ainda fazendo o que era próprio de seu instinto.
Winston percebeu a falta de
sensibilidade da namorada, no entanto seu pensamento estava voltado para a
promessa de um novo tempo que se abrigava no seio do proletariado e em seu modo
de ser. Não devia esmorecer. Pelo contrário, pois, assim como os pássaros,
proles como a mulher do quintal vizinho cantavam. E isso pelo mundo afora:
“em Londres e em Nova York,
na África e no Brasil e nas terras misteriosas e proibidas de além-fronteiras,
nas ruas de Paris e Berlim, nas aldeias da infindável planície russa, nos
bazares da China e do Japão”.
Do Partido é que não se
podia esperar qualquer atitude simpática. Seus membros não cantavam... Já da
parte do proletariado havia exemplos como o da mulher envelhecida, mas sólida e
“invencível” apesar das pesadas tarefas e dos muitos partos... Sim, ela se
tornara “monstruosa trabalhando desde o nascimento”, mas jamais deixara de
cantar.
Era um alívio saber que da
gente proletária surgiria “uma raça de seres conscientes”, que assumiria o
controle do futuro. E sim, certamente seria possível participar da nova
realidade “mantendo o espírito vivo como eles mantinham o corpo, e passar
adiante a doutrina secreta de que dois e dois são quatro”.
(...)
Um suspiro e na sequência o rapaz pareceu refletir a respeito da loucura
que aquelas considerações podiam significar... Não por acaso sussurrou que os
que pensavam como ele e Júlia “eram os mortos”, pois não tinham como escapar.
A garota que ainda se mantinha abraçada a ele concordou, “sim, nós somos
os mortos”. Na sequência o quarto foi tomado por uma assustadora “voz de ferro”
a sentenciar; “Vós sois os mortos”.
(...)
Obviamente o pânico tomou conta do casal... Cada
um saltou para um lado e Winston sentiu o sangue gelar. Júlia arregalou os
olhos enquanto a pele de seu rosto assumia uma tonalidade amarelada e a
maquiagem que lhe restava se destacava como se estivesse para despender numa só
placa.
A “voz de ferro” pronunciou
mais uma vez que, de fato, os dois eram os mortos... Júlia disse ao namorado
que o som provinha do local onde o quadro estava fixado. A voz respondeu que
era mesmo detrás do quadro que saía o som. Depois deu ordem para que
permanecessem exatamente onde estavam, exigiu que não se movimentassem enquanto
não recebessem as ordens.
Como não podia deixar de ser, Winston apavorou-se e concluiu que o fim
para ambos começava naquele momento. Não havia o que fazer além de tentar
captar o olhar de sua cúmplice sem encará-la. Talvez restasse a possibilidade
de fugir, mas o terror os dominou.
Não podiam desobedecer a
“voz de ferro” por mais absurda que fosse. Eles já calculavam que deviam
esperar pelo pior quando ouviram um barulho que lembrava o movimento de um
ferrolho... Na sequência houve um “tilintar de vidro se quebrando”.
(...)
O quadro despencou da
parede. Ele escondia uma teletela.
Júlia
disse com voz trêmula que era certo que podiam vê-los... A “voz de ferro”
confirmou que sim, podiam vê-los. Vociferou que deviam permanecer no centro do
quarto, “um de costas para o outro”; deviam juntar as mãos na nuca sem se
tocarem.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto