quarta-feira, 5 de agosto de 2020

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – começo da peça; fiéis chegam à igreja, junto à imponente porta aparece o “mendigo” bem nutrido e altivo; “outro” mendigo se acomoda junto ao primeiro; ordinárias pontas de cigarro e valiosos charutos Havana; um pouco da “história do mundo” para explicar que no começo ninguém era dono de nada; um pouco da dinâmica da peça

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/06/filme-dios-se-lo-pague-um-pouco-sobre.html antes de ler esta postagem:

Quando a cortina se abre para o início do primeiro ato, o que se vê é a porta majestosa de uma igreja antiga que, assim como a cidade, está mal iluminada... Há luz em seu interior e vemos uma senhora enlutada entrando no templo... Logo mais chega um senhor com ares serenos e na sequência uma moça inquieta que segue sempre a olhar para todas as direções.
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Aparece um mendigo que conta aproximadamente cinquenta anos... Ele tem barba e cabelos longos e traz o olhar sereno... Suas expressões sugerem algo de “messiânico”... Seu chapéu de feltro é surrado e mais se parece com um saco. Veste um paletó preto, sujo e em farrapo... Seus bolsos são enormes e estão cheios. Suas calças também são grandes, escuras e com alguns remendos. As botinas mal vestem os pés, pois são gastas e deixam à mostra dedos desprovidos de meias. Sua bengala é um “pau tosco” e debaixo do braço o mendigo carrega vários jornais velhos.
O curioso modo de andar do velho permite concluir que se trata de um tipo saudável... Ele não parece desnutrido. Logo que vê um rapaz se dirigindo à igreja assume ares de cansaço e sofrimento. Apoia-se na bengala e estende-lhe o chapéu, então o rapaz atira-lhe uma moeda.
O mendigo que havia acomodado seus jornais sobre os degraus da escada agradeceu com um “Deus lhe pague” e terminou de se ajeitar. No mesmo instante outro mendigo se aproximou... Este conta mais ou menos a mesma idade, está esfarrapado e carrega uma aparência de muito sofrimento. Ele está visivelmente faminto... Distraidamente estendeu o chapéu ao primeiro mendigo.
Só depois de reparar melhor, vê que se trata de um “colega de infortúnio”, então pediu desculpa e explicou que até o momento pouco arrecadara. Mostrou camaradagem e ofereceu um cigarro.
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Evidentemente estamos tratando do início da peça que serviu de base para o roteiro de “Dios se lo pague”... Aqui vamos conhecer a trama que se desenvolve na peça de Joracy Camargo e fazer comparações com o filme.
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O primeiro mendigo quis saber se os cigarros que o outro lhe oferecia eram bons. Uma latinha mostrava pontas ordinárias de cigarros. O mendigo agradeceu e recusou para logo a seguir oferecer charutos. O outro aceitou o inusitado agrado, mas obviamente mostrou-se espantado... À sua mão chegou um Havana e o mendigo admitiu que possuía vários daquele e disse que cada um custava 10$000 (dez mil réis).
O mais maltratado dos dois disse que nunca tivera “jeito para roubar”... Essa frase é sugestiva, e o primeiro adiantou-se a responder que também não tinha aquele tipo de hábito... Acrescentou que os charutos haviam sido comprados por ele, que “ainda não era um ladrão”.
O outro (aliás, é assim mesmo que aparece no roteiro) pediu desculpa por sua indiscrição... O primeiro mendigo explicou que não havia necessidade de se desculpar e esclareceu que não se tratava de um ladrão. Acrescentou que poderia sê-lo, pois isso era um “direito”. O outro foi se sentando querendo saber se aquilo era sério da parte do companheiro, então este respondeu-lhe que achava que tinha mesmo o direito de surripiar, mas acrescentou que preferira trabalhar, o que é algo difícil de se conseguir, e por isso resolveu recorrer às esmolas antes que se visse na necessidade de roubar... Disse ainda que “pedir dá menos trabalho”.
O outro quis saber se era por aquele motivo que o amigo vivia de pedir. A resposta foi afirmativa e na sequência o mendigo perguntou se ele conhecia a “história do mundo”... E foi explicando que:

                   “Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?”

(...)
Este é o começo da peça de Joracy Camargo...
Como veremos, trama principal se passa numa noite. O “outro” é o Barata... Ele se apresentará, mas o texto prosseguirá fazendo referência a ele como o “outro”. O mendigo protagonista é chamado apenas “mendigo”. Ele vive duas situações existenciais como o filme bem retrata... Veremos que nem todos os diálogos da peça foram reproduzidos fielmente pelo filme. Isso é normal, pois trata-se de uma adaptação.
O cenário da peça é basicamente o da porta da velha e imponente igreja... Mas há outros planos do palco onde se encenam os eventos narrados pelo mendigo ao companheiro Barata. Uma das cenas é a da visita do diretor da fábrica à casa de Juca (o mendigo; no filme o operário é chamado de Yuca) e sua companheira Maria. O empresário é citado apenas como “senhor” no roteiro da peça.
Outra cena que se passa em outro plano é o da rica casa, onde Péricles e Nancy acertam sua fuga. O roteiro da peça sugere uma sequência de iluminações que evidenciam o local onde se desenvolvem as ações... O que faz o papel do mendigo se transfere rapidamente de um local a outro. Desse modo participa dos “diálogos do presente” com o Barata e das ações do “passado” por ele narradas. Rápidas trocas de figurinos e retoques de maquiagem ocorrem no processo.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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