Quando
a cortina se abre para o início do primeiro ato, o que se vê é a porta majestosa
de uma igreja antiga que, assim como a cidade, está mal iluminada... Há luz em
seu interior e vemos uma senhora enlutada entrando no templo... Logo mais chega
um senhor com ares serenos e na sequência uma moça inquieta que segue sempre a
olhar para todas as direções.
Aparece um mendigo que conta aproximadamente cinquenta anos... Ele tem barba
e cabelos longos e traz o olhar sereno... Suas expressões sugerem algo de “messiânico”...
Seu chapéu de feltro é surrado e mais se parece com um saco. Veste um paletó
preto, sujo e em farrapo... Seus bolsos são enormes e estão cheios. Suas calças
também são grandes, escuras e com alguns remendos. As botinas mal vestem os
pés, pois são gastas e deixam à mostra dedos desprovidos de meias. Sua bengala
é um “pau tosco” e debaixo do braço o mendigo carrega vários jornais velhos.
O curioso modo de andar do
velho permite concluir que se trata de um tipo saudável... Ele não parece desnutrido.
Logo que vê um rapaz se dirigindo à igreja assume ares de cansaço e sofrimento.
Apoia-se na bengala e estende-lhe o chapéu, então o rapaz atira-lhe uma moeda.
O mendigo que havia acomodado seus jornais sobre os
degraus da escada agradeceu com um “Deus lhe pague” e terminou de se ajeitar.
No mesmo instante outro mendigo se aproximou... Este conta mais ou menos a mesma
idade, está esfarrapado e carrega uma aparência de muito sofrimento. Ele está visivelmente
faminto... Distraidamente estendeu o chapéu ao primeiro mendigo.
Só depois de reparar melhor, vê que se trata de um “colega de infortúnio”,
então pediu desculpa e explicou que até o momento pouco arrecadara. Mostrou
camaradagem e ofereceu um cigarro.
(...)
Evidentemente estamos tratando do início da peça que
serviu de base para o roteiro de “Dios se lo pague”... Aqui vamos conhecer a
trama que se desenvolve na peça de Joracy Camargo e fazer comparações com o
filme.
(...)
O primeiro mendigo quis saber se os cigarros que o outro lhe oferecia
eram bons. Uma latinha mostrava pontas ordinárias de cigarros. O mendigo
agradeceu e recusou para logo a seguir oferecer charutos. O outro aceitou o
inusitado agrado, mas obviamente mostrou-se espantado... À sua mão chegou um
Havana e o mendigo admitiu que possuía vários daquele e disse que cada um
custava 10$000 (dez mil réis).
O mais maltratado dos dois disse que nunca tivera “jeito para roubar”...
Essa frase é sugestiva, e o primeiro adiantou-se a responder que também não
tinha aquele tipo de hábito... Acrescentou que os charutos haviam sido
comprados por ele, que “ainda não era um ladrão”.
O outro (aliás, é assim
mesmo que aparece no roteiro) pediu desculpa por sua indiscrição... O primeiro
mendigo explicou que não havia necessidade de se desculpar e esclareceu que não
se tratava de um ladrão. Acrescentou que poderia sê-lo, pois isso era um “direito”.
O outro foi se sentando querendo saber se aquilo era sério da parte do
companheiro, então este respondeu-lhe que achava que tinha mesmo o direito de
surripiar, mas acrescentou que preferira trabalhar, o que é algo difícil de se
conseguir, e por isso resolveu recorrer às esmolas antes que se visse na
necessidade de roubar... Disse ainda que “pedir dá menos trabalho”.
O outro quis saber se era
por aquele motivo que o amigo vivia de pedir. A resposta foi afirmativa e na
sequência o mendigo perguntou se ele conhecia a “história do mundo”... E foi
explicando que:
“Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono
da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um
dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?”
(...)
Este
é o começo da peça de Joracy Camargo...
Como veremos, trama principal
se passa numa noite. O “outro” é o Barata... Ele se apresentará, mas o texto
prosseguirá fazendo referência a ele como o “outro”. O mendigo protagonista é
chamado apenas “mendigo”. Ele vive duas situações existenciais como o filme bem
retrata... Veremos que nem todos os diálogos da peça foram reproduzidos
fielmente pelo filme. Isso é normal, pois trata-se de uma adaptação.
O cenário da peça é basicamente o da porta da velha e imponente
igreja... Mas há outros planos do palco onde se encenam os eventos narrados pelo
mendigo ao companheiro Barata. Uma das cenas é a da visita do diretor da
fábrica à casa de Juca (o mendigo; no filme o operário é chamado de Yuca) e sua
companheira Maria. O empresário é citado apenas como “senhor” no roteiro da
peça.
Outra cena que se passa em outro plano é o da
rica casa, onde Péricles e Nancy acertam sua fuga. O roteiro da peça sugere uma
sequência de iluminações que evidenciam o local onde se desenvolvem as ações...
O que faz o papel do mendigo se transfere rapidamente de um local a outro. Desse
modo participa dos “diálogos do presente” com o Barata e das ações do “passado”
por ele narradas. Rápidas trocas de figurinos e retoques de maquiagem ocorrem
no processo.
Continua em
https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/08/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo_6.html
Leia: “Deus
lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto