terça-feira, 22 de outubro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – atitudes comuns de outrora passaram a ser consideradas vulgares, brutais e intoleráveis; valorização do corpo e respeito à individualidade; dos ambientes de encenação e dos tumultos entre os espectadores; necessidade interior de recolhimento e de experimentar a contemplação; depoimento epistolar de Pauline de R sobre a ópera “Alceste”, de Gluck; medidas para disciplinar o público nos teatros parisienses

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/10/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_25.html antes de ler esta postagem:

Como se vê, não foi de um momento para outro que as pessoas passaram a relacionar a tortura judicial a entraves aos direitos. Ao debruçar-se sobre o caso Calas, Voltaire se preocupou inicialmente com a questão da intolerância sem fazer referências críticas ao suplício da roda. Tempos depois o filósofo sentenciou que a crueldade da tortura judicial só podia provocar aversão a todos que nutrem alguma “compaixão natural”.
Os pensadores do Direito e reformadores produziram muitas reflexões e materiais que pareciam inspirados nas considerações do autor de “Tratado sobre a Tolerância”. Lynn Hunt sustenta que, além do sentimento de “companheirismo” que esses conteúdos podem ter suscitado, as pessoas passaram a dar mais valor ao corpo humano e à necessidade de privacidade... Houve tempos em que as orientações religiosas definiam a “sacralidade” dos corpos, todavia admitiam-se mutilações e torturas dos “corpos individuais” para que a ordem e “o bem comum” fossem preservados.
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Ocorreram mudanças na ordem secular... As sociedades começaram a valorizar a “autonomia e a inviolabilidade” dos corpos. A ideia de que cada um tem direito à individualidade valorizou a privacidade, então as violações e agressões brutais aos corpos dos semelhantes tornaram-se repugnantes.
A ideias de que a individualidade dos corpos deve ser respeitada impôs “fronteiras” que devem ser respeitadas... Na verdade isso ocorria desde o século XIV, quando se iniciou uma sensibilização em torno da “separação natural” entre os indivíduos... Algumas situações específicas que antes ocorriam comumente em público (como a busca do alívio às necessidades fisiológicas e os excrementos delas resultantes), passaram a ser vistas como vergonhosas e repulsivas.
Atitudes simples como a utilização de lenços (em vez de utilizarem as mãos para assoar o nariz) foram adotadas... Vários hábitos deixaram de ser aceitos como razoáveis, entre eles a autora destaca o de cuspir, compartilhar a mesma tigela de alimentos e dormir em cama com outras pessoas. Posturas agressivas ou demonstração de fortes e violentas emoções tornaram-se intoleráveis. Tudo isso pode significar um novo entendimento a respeito da valorização da individualidade e o desejo de respeito pela autonomia. Evidentemente os que interagiam na sociedade deviam se autodisciplinar para também não ultrapassarem as fronteiras que asseguravam a integralidade dos demais.
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A divisão dos cômodos das casas e o modo como as pessoas passaram a se comportar nos ambientes de encenação teatral e de concertos indicou uma influência do respeito à individualidade de cada um.
Antigamente os teatros eram locais em que muita gente caminhava durante as apresentações... Em muitas dessas ocasiões as pessoas se encontravam e iniciavam conversas e discussões calorosas, o que prejudicava a audição e contemplação de óperas e outras encenações. A consideração pelos demais e pelo seu direito às “emoções individuais” possibilitou mudanças de comportamento que resultaram em maior sensibilização. O livro cita o depoimento epistolar de uma senhora (certa Pauline de R) sobre a ópera “Alceste” (Gluck) exibida em Paris durante 1776:

                   "Escutei essa nova obra com uma profunda atenção. (...) Desde os primeiros compassos fui invadida por um forte sentimento de admiração reverente e senti dentro de mim esse impulso religioso com tal intensidade (...) que sem dar conta cai de joelhos no meu camarote e permaneci nessa posição, suplicante e com as mãos unidas, até o final da peça”.

Como se vê, a reação de Pauline pode ser comparada àquelas próprias das experimentadas durante os recolhimentos espirituais. A mudança que se processava vinha do interior das pessoas... Algo impensável anteriormente, dado que os teatros eram mais conhecidos pelas “arruaças” provocadas por frequentadores dispostos a bate-bocas e até confrontos físicos marcados pela embriaguez e gritaria que interrompiam as encenações.
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Ainda tomando a Paris do século XVIII como referência, esses eventos eram conhecidos pela prática de espectadores que “coordenavam os atos de tossir, cuspir, espirrar e soltar gases para perturbar os espetáculos de que não gostavam”.
Em 1759 foram adotadas medidas para inibir os tumultos que impossibilitavam a audição das falas dos artistas. Até então, as pessoas perambulavam e se comportavam como uma turba. De modo simplificado, bancos foram posicionados mais afastados do palco, tirando a possibilidade de espectadores se sentarem no tablado como comumente ocorria. A Comédie Française passou a ter esse tipo de assento em 1782, e isso proporcionou públicos mais disciplinados.
Nem todos concordaram com a novidade... Vários artigos nos jornais criticaram o que entendiam ser um “ataque perigoso à liberdade e franqueza da plateia”. Mas aos poucos o “silêncio religioso” tornou-se uma prática também durante as encenações e “as explosões coletivas” começaram a “dar lugar a experiências interiores individuais e mais tranquilas”.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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