Como se vê, não foi de um momento para outro que as pessoas passaram a relacionar a tortura judicial a entraves aos direitos. Ao debruçar-se sobre o caso Calas, Voltaire se preocupou inicialmente com a questão da intolerância sem fazer referências críticas ao suplício da roda. Tempos depois o filósofo sentenciou que a crueldade da tortura judicial só podia provocar aversão a todos que nutrem alguma “compaixão natural”.
Os pensadores do Direito e reformadores produziram muitas reflexões e materiais que pareciam inspirados nas considerações do autor de “Tratado sobre a Tolerância”. Lynn Hunt sustenta que, além do sentimento de “companheirismo” que esses conteúdos podem ter suscitado, as pessoas passaram a dar mais valor ao corpo humano e à necessidade de privacidade... Houve tempos em que as orientações religiosas definiam a “sacralidade” dos corpos, todavia admitiam-se mutilações e torturas dos “corpos individuais” para que a ordem e “o bem comum” fossem preservados.
(...)
Ocorreram mudanças na ordem secular... As sociedades
começaram a valorizar a “autonomia e a inviolabilidade” dos corpos. A ideia de
que cada um tem direito à individualidade valorizou a privacidade, então as
violações e agressões brutais aos corpos dos semelhantes tornaram-se repugnantes.
A ideias de que a individualidade dos corpos deve ser
respeitada impôs “fronteiras” que devem ser respeitadas... Na verdade isso
ocorria desde o século XIV, quando se iniciou uma sensibilização em torno da
“separação natural” entre os indivíduos... Algumas situações específicas que
antes ocorriam comumente em público (como a busca do alívio às necessidades
fisiológicas e os excrementos delas resultantes), passaram a ser vistas como
vergonhosas e repulsivas.
Atitudes
simples como a utilização de lenços (em vez de utilizarem as mãos para assoar o
nariz) foram adotadas... Vários hábitos deixaram de ser aceitos como razoáveis,
entre eles a autora destaca o de cuspir, compartilhar a mesma tigela de
alimentos e dormir em cama com outras pessoas. Posturas agressivas ou demonstração
de fortes e violentas emoções tornaram-se intoleráveis. Tudo isso pode
significar um novo entendimento a respeito da valorização da individualidade e
o desejo de respeito pela autonomia. Evidentemente os que interagiam na
sociedade deviam se autodisciplinar para também não ultrapassarem as fronteiras
que asseguravam a integralidade dos demais.
(...)
A divisão dos cômodos das casas e o modo como as
pessoas passaram a se comportar nos ambientes de encenação teatral e de
concertos indicou uma influência do respeito à individualidade de cada um.
Antigamente
os teatros eram locais em que muita gente caminhava durante as apresentações...
Em muitas dessas ocasiões as pessoas se encontravam e iniciavam conversas e
discussões calorosas, o que prejudicava a audição e contemplação de óperas e
outras encenações. A consideração pelos demais e pelo seu direito às “emoções
individuais” possibilitou mudanças de comportamento que resultaram em maior
sensibilização. O livro cita o depoimento epistolar de uma senhora (certa
Pauline de R) sobre a ópera “Alceste” (Gluck) exibida em Paris durante 1776:
"Escutei essa nova
obra com uma profunda atenção. (...) Desde os primeiros compassos fui invadida
por um forte sentimento de admiração reverente e senti dentro de mim esse
impulso religioso com tal intensidade (...) que sem dar conta cai de joelhos no
meu camarote e permaneci nessa posição, suplicante e com as mãos unidas, até o
final da peça”.
Como se vê, a reação de Pauline pode ser comparada àquelas
próprias das experimentadas durante os recolhimentos espirituais. A mudança que
se processava vinha do interior das pessoas... Algo impensável anteriormente,
dado que os teatros eram mais conhecidos pelas “arruaças” provocadas por
frequentadores dispostos a bate-bocas e até confrontos físicos marcados pela
embriaguez e gritaria que interrompiam as encenações.
(...)
Ainda tomando a Paris do século XVIII como referência,
esses eventos eram conhecidos pela prática de espectadores que “coordenavam os
atos de tossir, cuspir, espirrar e soltar gases para perturbar os espetáculos
de que não gostavam”.
Em 1759 foram adotadas medidas para inibir os tumultos que
impossibilitavam a audição das falas dos artistas. Até então, as pessoas
perambulavam e se comportavam como uma turba. De modo simplificado, bancos
foram posicionados mais afastados do palco, tirando a possibilidade de espectadores
se sentarem no tablado como comumente ocorria. A Comédie Française passou a ter
esse tipo de assento em 1782, e isso proporcionou públicos mais disciplinados.
Nem todos concordaram com a novidade... Vários artigos nos
jornais criticaram o que entendiam ser um “ataque perigoso à liberdade e
franqueza da plateia”. Mas aos poucos o “silêncio religioso” tornou-se uma
prática também durante as encenações e “as explosões coletivas” começaram a “dar
lugar a experiências interiores individuais e mais tranquilas”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/10/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_24.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto