segunda-feira, 14 de outubro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – ainda sobre o processo contra Jean Calas; versão de assassinato apresentada pelos familiares; punições previstas em casos de suicídio; sobre o “suplício da roda”; Voltaire, seu “Tratado sobre a tolerância por ocasião da morte de Jean Calas” e a crítica ao “fanatismo religioso”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/10/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_12.html antes de ler esta postagem:

Desde 1685 os cultos públicos dos calvinistas estavam proibidos na França... Para as autoridades, isso parece fundamentar a tese de que Calas tivesse deliberado matar o filho Marc-Antoine, que contava 28 anos e manifestara sua conversão ao catolicismo.
Pesava contra ele o fato de cinco anos antes deste episódio, Louis Calas (também filho de Jean) ter deixado de professar a fé calvinista. À polícia, a família apresentou a versão de que Marc-Antoine havia sido assassinado... Isso afastaria a hipótese de suicídio, que implicava em horrenda punição. Na França de então, o suicida “não podia ser enterrado em chão consagrado e, se considerado culpado num julgamento, podia ter o corpo exumado, arrastado pela cidade, pendurado pelos pés e atirado no lixo”.
O rapaz morreu numa noite de outubro de 1761 logo depois do jantar. Seu corpo estava pendurado “num vão de porta” que dava para os fundos da casa... Mas Jean e os familiares disseram que o encontraram estirado no chão para sustentar a versão de assassinato. Isso não convenceu as autoridades, que decidiram prendê-lo. Sua esposa, um filho e o criado, e mais um visitante também foram encarcerados. Inicialmente todos foram acusados de terem assassinado Marc-Antoine...
O tribunal de Toulouse determinou a tortura do casal e do filho para que as confissões fossem obtidas, todavia, durante a apelação, a corte revogou a tortura antes do veredito de condenação e definiu que apenas Jean Calas tinha culpa pelo assassinato de Marc-Antoine.
(...)
Como se sabe, o pobre homem foi condenado à morte.
Os condenados à morte sofriam um longo e doloroso processo...
Podemos dizer que tudo fazia parte de um ritual que tinha o objetivo de deixar claro para a sociedade que o poder estabelecido era perfeito e não permitia desvios dos súditos. Homicidas e assaltantes que atuavam nas estradas enfrentavam o suplício da roda, mas antes eram amarrados a uma cruz em forma de X e tinham os ossos dos membros esmagados pelo carrasco. Como se não bastasse, eram sufocados por uma corda no pescoço que tinha também a função de deslocar suas vértebras... Com uma vara de ferro, os algozes batiam em suas cinturas como que a finalizar a trituração do corpo.
Só depois vinha a roda. O corpo destroçado do condenado era preso à “roda de carruagem” colocada no alto de um poste de três metros, onde permanecia por algum tempo depois de morto.
Como se vê, tratava-se de um “espetáculo deplorável” ao qual o populacho acorria sempre que anunciado. No caso específico de Jean Calas, o tribunal autorizou duas horas de tortura até o momento do estrangulamento para finalmente levá-lo à roda. Como já se mencionou, até o momento de sua morte protestou inocência.
(...)
 Na época o caso chamou a atenção e algum tempo depois a execução tornou-se ainda mais comentada.
Sem dúvida o fato de Voltaire debruçar-se sobre o episódio desde o começo contribuiu para que isso ocorresse. O filósofo arrecadou dinheiro para ajudar a família de Calas, publicou um panfleto em que denunciava o abuso das torturas, além de redigir cartas em nome dos familiares do condenado para fornecer “visões originais do fato”.
Em “Tratado sobre a tolerância por ocasião da morte de Jean Calas”, Voltaire usou a expressão “direito humano” pela primeira vez. A respeito dessa obra, “A Invenção dos Direitos Humanos” destaca que ele condena a “intolerância” sustentando que ela não pode ser um “direito humano”. Observa-se aí que Voltaire não levantava uma argumentação a respeito da “liberdade de religião” como direito humano. Não há um protesto incisivo contra a tortura ou o suplício da roda. Vê-se que sua indignação principal era contra o “fanatismo religioso”. Então constata-se que essa intolerância motivou os agentes do tribunal e seus juízes.
A questão proposta por Voltaire girava em torno da dificuldade de se entender o que poderia legitimar as atitudes dos “homens da lei” em suas imposições aos processados: Como aceitar que um homem pudesse impor a outro “acredite no que eu acredito e no que você não pode acreditar, senão vai morrer”? E para criticar mais incisivamente o que considerava uma barbárie, afirmava que a aberração se verificava em países onde a Inquisição pesava sobre as consciências (ele cita Portugal, Espanha e Goa).
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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