A respeito dos registros da última postagem, conclui-se que bem poucos se atreviam a defender direitos às mulheres... E mesmo ao tempo dos processos revolucionários na Europa e América, a causa não só não emplacava como era abertamente rejeitada por ativistas dos direitos.
Muitos se posicionaram sobre os efeitos dos romances epistolares sobre o público feminino. Os que se colocavam contra afirmavam que as mulheres não deviam se ocupar com “leituras de histórias de amor”. E mesmo os que haviam manifestado apreço pelas obras passaram a alertar sobre o fato de as mulheres serem mais “suscetíveis” e que, de modo particular, as mais jovens podiam sofrer os abalos psicológicos mais sérios.
Muitos anos depois de suas considerações positivas sobre os romances epistolares, Jefferson (em 1818) destacou que eles podiam ser prejudiciais às moças. Ao lerem histórias carregadas de “paixão desregrada”, podiam ser levadas a “uma imaginação intumescida” e a “um juízo doentio”. Essa advertência influenciou os que manifestavam maior apoio aos direitos das mulheres. A própria Mary Wollstonecraft, escritora inglesa considerada “a mãe do feminismo moderno”, sentenciou que os referidos romances eram “o único tipo de leitura calculado para atrair uma inteligência inocente e frívola”.
Ainda a respeito de Mary Wollstonecraft, “A Invenção dos Direitos Humanos” destaca que também ela publicou dois romances que evidenciavam heroínas. Apesar de se manifestar criticamente a respeito de “Emílio” (no tocante às reservas à educação feminina), ela leu “Júlia” e costumeiramente citava expressões inspiradas em “Clarissa” ou nos romances de Sterne.
(...)
Até
aqui percebemos que mesmo os defensores dos direitos não se sentiam à vontade
para estendê-los a todos. Em 1802, Jefferson escreveu ao teórico da política
inglês Joseph Priestley:
“É
impossível não ter consciência de que estamos agindo por toda a humanidade; de
que circunstâncias negadas a outros, mas a nós concedidas, impuseram-nos o
dever de experimentar qual é o grau de liberdade e autogoverno que uma
sociedade pode se arriscar a conceder a seus indivíduos”.
O
“mais elevado grau de liberdade” aí corresponde à participação política do
maior número de homens brancos possível. O livro lembra que para o autor da
Declaração de 1776 esse direito poderia se estender aos índios (desde que se
tornassem produtores agrícolas). Já em relação aos escravos, Jefferson reconhecia
que eles deviam ser vistos como seres humanos, e que deviam ser tratados como
tais, todavia nem eles ou as mulheres estariam aptos à participação ativa no
Estado que se estruturava.
As
ideias expostas por Jefferson em sua carta a Priestley estavam em consonância
com o que a maioria dos europeus e americanos pensava sobre o “mais elevado
grau de liberdade”. Até o fim de sua vida (1826), Jefferson não assistiu ou
vislumbrou qualquer mudança nesse ponto de vista.
(...)
As reflexões sobre “direitos do homem” não podiam deixar
de problematizar os processos e as torturas judiciais.
A abordagem inicial desse tema pelo livro destaca que em
1762 o tribunal da cidade de Toulouse condenou Jean Calas, um protestante
francês que contava 64 anos, à morte sob a tortura do “suplício da roda”. Calas
havia assassinado o próprio filho por motivos religiosos depois de tentar impedi-lo
de se converter ao catolicismo.
O caso tornou-se um dos mais debatidos pelos pensadores
dos “direitos do homem” (termo utilizado pela primeira vez por Rousseau no
mesmo ano do processo contra Calas).
(...)
Antes
da execução propriamente dita, o réu foi submetido à “questão preliminar”, uma
tortura judicial destinada a obter do supliciado os nomes de seus cúmplices...
O texto de Lynn Hunt descreve a cena:
“Com
os punhos atados bem apertados a uma barra atrás dele, Calas foi esticado por
um sistema de manivelas e roldanas que puxava firmemente seus braços para cima,
enquanto um peso de ferro mantinha os pés no lugar” (...)
“Quando Calas se
recusou a fornecer nomes depois de duas aplicações, foi atado a um banco e
jarros de água foram despejados à força pela sua garganta, enquanto a boca era
mantida aberta por dois pauzinhos” (...)
“Pressionado
de novo a citar nomes, diz-se que ele respondeu: ‘Onde não há crime, não pode
haver cúmplices’”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/10/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_14.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto