Depois de ter ouvido poucas e boas do Senhor Lino, Teodorico passou pela casa de Benta Bexigosa em busca de aventura com as raparigas... No prostíbulo também estava o Rinchão, seu velho conhecido dos tempos de estudos em Coimbra.
Os dois trocaram algumas ideias. Silvério (este era o nome do Rinchão) encomendou algumas relíquias... O Raposo ficou sabendo que ele estava em vésperas de se casar com a filha da Senhora Nogueira, que era muito rica e dona de considerável vara de porcos na cidade de Beja.
O Rinchão pretendia agradar a sogra carola com objetos que só Teodorico podia providenciar... Esperava obter “coisas do Santo Sepulcro”.
O Raposo caprichou e projetou um belo “cofre de relíquias”... Garantiu que um dos pregos era da cruz de Cristo (ele mesmo sabia que se tratava do “septuagésimo sexto”) e enfeitou a peça com ”flores secas da Galileia”.
(...)
A venda ao Rinchão foi
providencial... Graças ao negócio que fecharam, Teodorico pôde quitar suas
dívidas no hotel. Depois decidiu se transferir para um quartinho na “casa de
hóspedes” de certo Senhor Pita.
Seu endereço, então, passou
a ser a “Travessa da Palha”. Ele mesmo não tinha como esconder que sua situação
se tornara ainda mais precária... O aposento localizado no quinto andar possuía
uma caminha de ferro e uma velha poltrona de forro esgarçado e mal cheiroso.
Havia também uma cômoda
sobre a qual ele colocara uma moldura que evidenciava uma “litografia de Cristo
crucificado”... A imagem trazia umas nuvens escuras abaixo dos pés de Nosso
Senhor... Seus olhos claros e escancarados pareciam perseguir o rapaz em todos
os seus movimentos.
(...)
Fazia uma semana que
Teodorico estava instalado na casa de hóspedes do Pita... Perambulava pela
cidade em busca de alternativa para seguir sobrevivendo, quando topou com o
André, criado do Pomba de Ouro... O rapaz entregou-lhe uma carta que havia
chegado ao hotel no dia anterior.
O envelope não deixava
dúvidas... A carta era mesmo endereçada a ele e trazia a marca de urgência... O
papel exibia uma tarja preta e também o sinete cravado como lacre era escuro.
Logo que abriu a
correspondência, Teodorico reconheceu a assinatura do tabelião Justino... O
documento repleto de formalidades noticiava que a “respeitável tia” havia
sucumbido.
De modo apressado, percorreu as linhas para saber dos detalhes... Ela
teve “congestão dos pulmões”, recebera os sacramentos e os amigos choraram
muito a morte da amada senhora... Um trecho citava “o nosso Negrão”... E mais
adiante: "do testamento da virtuosa senhora, consta que deixa a seu
sobrinho Teodorico o óculo que se acha pendurado na sala de jantar”...
(...)
A mensagem era clara... Definitivamente era um deserdado.
Teodorico colocou o chapéu e saiu às carreiras
esbarrando nos transeuntes. Chegou cartório do Justino e o encontrou em serviço
no balcão. O tipo trajava a gravata preta em sinal de luto, comia umas fatias
de vitela que estavam em cima de uma folha antiga do “Diário de Notícias”. O
rapaz foi logo indagando a respeito de sua parte no testamento... Apenas o
óculo?
Justino mastigava, mas não
deixou de responder... Era isso mesmo, Dona Patrocínio havia lhe deixado apenas
o óculo do comendador Godinho.
O moço quase teve um colapso e caiu sobre o sofá de couro. Justino
deu-lhe um cálice de vinho... E foi isso que o reanimou... Então pediu ao
tabelião que lhe revelasse os detalhes do testamento da velha Patrocínio.
(...)
Justino disse que a santa
senhorinha deixara-lhe “duas inscrições de conto”... Em relação às riquezas que
haviam pertencido ao comendador Godinho, esclareceu que foram por ela
distribuídas de modo não muito coerente. Acrescentou que a distribuição era,
inclusive, perversa.
Ao “Senhor dos Passos da
Graça”, ela deixou “o prédio do Campo de Santana e quarenta contos de
inscrições”... O padre Casimiro, que sequer podia se movimentar, herdou “as
ações da Companhia do Gás, as melhores pratas e a casa de Linda-a-Pastora”... O
padre Pinheiro foi agraciado com “um prédio na Rua do Arsenal”...
(...)
Obviamente o testamento não
se encerrava por aí.
Na
próxima postagem veremos o Justino revelar o que coube ao padre Negrão, ao
doutor Margaride, e também à criada Vicência.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto