No mercado das relíquias ninguém superava o Raposo, pois só ele era reconhecido pela recente romagem.
Ele se especializou nas fraudes cada vez mais convincentes... Seus objetos eram acompanhados de documento que garantia a “autenticidade”. Papéis engordurados traziam a assinatura (feita por ele mesmo) do Patriarca de Jerusalém... Por isso os clientes preferiam as suas mercadorias.
Teodorico dominou o mercado... Mas chegou o tempo da saturação e as vendas diminuíram. A saída foi baixar os preços... E na busca de novos clientes, o rapaz pagou anúncio no “Diário de Notícias” dando conta de que na “Tabacaria Rego” estavam sendo vendidas “preciosidades da Terra Santa” a baixos bem preços.
Também para retomar as boas vendas, passou a se levantar mais cedo e a visitar as portas das igrejas... Disfarçado e vestido como se fosse um eclesiástico, se aproximava das velhas carolas e lhes oferecia “pedaços da túnica da Virgem Maria” e também tiras “das sandálias de São Pedro”... Dizia-lhes que os preços eram imperdíveis e que eram ótimos para curar “catarros”.
(...)
O problema é que, ao mesmo
tempo em que as vendas de relíquias diminuíam, as dívidas no Pomba de Ouro
cresciam.
Teodorico começou a evitar topar
o dono da espelunca pelas dependências... Por outro lado, mais do que depressa
passou a agradar o André, que era criado da casa.
Suas esperanças se renovavam quando se aproximavam as datas de festas
religiosas, ocasiões em que a devoção reacendia nas pessoas.
Como se via cada vez mais
dependente do negócio movido pela fé, passou a execrar republicanos e filósofos
que criticavam o catolicismo... Chegou a escrever artigos para “A Nação”
repudiando os maus juízos que faziam às relíquias... Em suas memórias, há um
trecho em que levantou a seguinte questão: “Se vos não apegais aos ossos dos
mártires, como quereis que prospere este país?"
(...)
O rapaz fazia os desabafos
em defesa da religião também no café do Montanha... Obviamente os
frequentadores chegados ao jogo de bilhar pouco tinham a opinar a respeito.
E no prostíbulo da Benta
Bexigosa, as raparigas cansaram-se de ouvir suas ameaças! Ele lhes dizia que,
se não usassem “seus bentinhos e escapulários”, passaria a frequentar a casa de
Dona Adelaide.
Sem saber o que mais podia
fazer para recuperar as vendas, Teodorico reatou com o Senhor Lino... Chamou-o
ao quarto e revelou-lhe grande quantidade de “relíquias”. Garantiu que tinham
acabado de chegar de Jerusalém e que estavam disponíveis para negócios.
(...)
Num primeiro momento, o homem até deu a entender que podia se
interessar... Mas depois esbravejou que aquela mercadoria não tinha saída... E
o culpou por ter estragado o comércio de artigos religiosos.
Disse que o mercado estava abarrotado. Não havia mais como vender
“cueirinhos do Menino Jesus”, artigo que sempre tivera boa procura e aceitação!
O
Senhor Lino estava por dentro das transações de Teodorico, tanto é que se
queixou das vendas de ferraduras, algo abusado e “indecente”... Um de seus
primos, que era capelão, havia observado que “haviam sido vendidas muitas
ferraduras”... Quatorze! Para um país pequeno como Portugal? Era simplesmente
inaceitável!
As reclamações do Senhor Lino contra o
procedimento do vendilhão de relíquias falsificadas não ficaram por aí... Ele
protestou também contra a grande quantidade de “pregos, dos que pregaram Cristo
na cruz”... Teodorico havia vendido setenta e cinco! E todos com
“documentação”!
Indignado, o funcionário da
Câmara Patriarcal deixou o recinto e bateu a porta com violência.
(...)
Naquela mesma noite,
Teodorico visitou as raparigas da casa da Benta Bexigosa.
A grande surpresa foi ter
encontrado o velho Rinchão, o Silvério dos tempos de estudos em Coimbra.Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_4.html
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto