Teodorico sentiu-se arrasado pela confirmação de sua ruína desde que o testamento de Dona Patrocínio foi revelado.
No quarto da pensão da Travessa da Palha fez o seu desabafo e dirigiu-se diretamente à litogravura do Cristo Crucificado.
(...)
De repente a moldura passou a emitir um clarão dourado... O vidro que
protegia a figura se abriu tal como porta... O rapaz apavorou-se ao ver o
Cristo retirar-se dos limites do quadro... Ainda preso ao madeiro da cruz, Ele
encheu-se de beleza e majestade, e deslizou em sua direção, assumindo estatura
que atingia o teto do aposento.
Teodorico
soltou um grito e caiu de joelhos... Teve a sensação de que uma leve brisa
passava pelo quarto e logo ouviu “uma voz repousada e suave”. Era o Cristo
(pelo menos foi assim que ele entendeu) que se dirigia diretamente a ele com
considerações a respeito de suas palavras desesperadas.
(...)
Em síntese, O Raposo
ouviu que as vezes que ele beijara os pés das imagens foram com a intenção de
demonstrar à tia Patrocínio a sua “falsa piedade”. Seus lábios jamais
pronunciaram sincera oração e nem seu olhar expressara qualquer humildade.
Todos os seus gestos foram somente para convencer e agradar a beata Dona
Patrocínio.
A
quem Teodorico queria enganar? A espetacular visão deixou claro que suas
prostrações reverenciavam o “deus dinheiro” deixado pelo comendador Godinho...
Seu céu não era outro senão o testamento da tia milionária. Por isso se fingira
de devoto mesmo se tratando de um tipo sem crenças; de casto, sendo o mais
devasso das criaturas; de caridoso, quando na verdade não passava de mesquinho.
A todos dava a
entender que se tornara um filho afetuoso, mas ele bem sabia que não passava de
um interesseiro ardiloso e capaz de qualquer coisa para obter a herança.
Hipócrita! Era isso o que Teodorico era!
Foi isso o que a
visão lhe sentenciou.
(...)
E ele nem podia
objetar... De fato, levava “duas existências”... Diante da tia, mostrava-se um
beato que jejuava e não deixava de comparecer às novenas e rezas do rosário.
Longe dela era um guloso e frequentador da casa “da Adélia e da Benta”.
Uma vida de
mentiras... Só tinha compromisso com a verdade quando se dirigia ao céu (e ao
mundo) para pedir “a Jesus e à Virgem que rebentassem depressa” a velha
Patrocínio.
E o que era o galho
espinhento que embrulhara? Uma coisa tão falsa quanto o coração que batia em
seu peito... E pensar que era com aquilo que esperava obter o dinheiro e as
propriedades da tia! O outro embrulho escondia “rendas e laços” que
evidenciavam seu fingimento. Com justiça, o embrulho que Dona Patrocínio abriu
revelou a perversidade do sobrinho... Sua hipocrisia foi inútil!
(...)
Aquelas verdades arrasaram o valente Raposo que, caído sobre as tábuas,
chorou copiosamente.
De modo bastante convincente, a voz pronunciou que não sabia quem havia
feito a troca dos embrulhos... Algo terrível e burlesco...
Pode
ser que ninguém ou mesmo o próprio Teodorico tivesse mudado os embrulhos!
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_64.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto