“E a existência de Sete-de Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais”.
(...)
Ao amanhecer daquele
dia, vemos Sete-de-Ouros ainda sonolento e paralisado diante do cocho
completamente desabastecido. De vez em quando sua cabeça balançava, então
soltava uma baforada que levantava pó de farelo... Mecanicamente dilatava as
narinas e “projetava o beiço de cima, como um focinho de anta, e depois o de
baixo”.
A testa do burrinho era marcada por uma cavidade desde a altura dos
olhos... Essa marca de sua ossatura causava a impressão de que ele carregava um
par de óculos e conferia-lhe um aspecto ainda mais envelhecido.
Se
o viam envelhecido, não podiam deixar de considerar que ainda era bem esperto.
Ninguém o via a pastar pelas bordas dos capões onde cresce o cafezinho e várias
plantas venenosas... Locais como aquele eram infestados das moscas do berne (lucília
verde, varejeira rajada e outra de “barriga azul”).
Sete-de-Ouros era bem
tratado... Sua crina era bem aparada, limpa e sem carrapatos ou carrapichos. A
sela evidenciava que ainda era utilizado como montaria, portanto não estava
definitivamente “aposentado”. Tanto é que seria utilizado no serviço do dia. O
tropeiro João Manico havia recebido ordem de montá-lo...
(...)
O
dia amanhecera com nuvens carregadas... Nada de sol, mas o calor e a umidade
eram intensos. A neblina cobria o alto da serra e certamente o tempo estava bem
pior pelos lados da nascente.
Alheio a tudo, Sete-de-Ouros
riscava o chão com seu casco desprovido de ferradura... Eventualmente abria os
olhos e os voltava para a direção dos vários currais, onde o movimento já era
intenso e violento... Os cercados em frente ao casarão estavam abarrotados de
bois.
(...)
Na sequência, o autor
descreve a movimentação dos currais, o variado gado, espécies, suas origens e
características... Destaca o comportamento da boiada, sobretudo dos exemplares
mais agitados.
O fragmento original
é espetacular. Sem dúvida trata-se de uma das referências mais importantes da
literatura brasileira.
(...)
As espécies locais, “mestiços
de todas as meia-raças plebeias dos campos-gerais”, comprimiam-se nos
cercados... Os exemplares eram provenientes das bandas do rio Urucuia, do rio
Verde, “das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do
Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim”.
A variedade de cores era simplesmente espantosa... Mas não para os peões
acostumados com o manejo e transporte dos rebanhos. Certamente aquela
abundância não escaparia à admiração dos forasteiros.
Guimarães Rosa diz que a pelagem dos animais era das “cores mais achadas
e impossíveis”... E acrescenta que havia “pretos, fuscos (sem brilho na
pelagem), retintos, gateados, baios (de cor castanha), vermelhos, rosilhos,
barrosos (da cor do barro; mistura de café com leite), alaranjados; castanhos
tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados (acastanhados com extremidades
escuras), listados, versicolores (de muitas cores); turinos, marchetados com
polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias
concêntricas no pelame - curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento,
como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces
talhadas em granito impuro”.
Agrupados,
movimentavam-se como as correntes dos mares, iam e voltavam pelos terreiros “rodando
remoinhos”... Babavam e agitavam as caudas sem cessar. Na agitação formavam uma
grande massa. Tinha-se a impressão que cada um buscava chegar-se aos seus semelhantes.
Esse
era o caso do “crioulo barbeludo” que, no meio da movimentação, permanecia
estático, ruminando e voltando o olhar saliente para as alturas. Já o berro
rouco que se ouvia só podia ser do gyr, que andava ao mesmo tempo em que se balançava
todo... Talvez chamasse a vaca ou o seu “primo guzerate” de antepassados
indianos do “Coromandel ou Travancor”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_31.html
Leia: O
Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto