Justino seguiu informando a respeito da partilha do patrimônio deixado pela tia Patrocínio...
De acordo com o tabelião, a velha deixou para o padre Negrão, desafeto do Teodorico: “a deliciosa quinta do Mosteiro, com o seu pitoresco portão de entrada, onde se viam ainda as armas dos condes de Lindoso, as inscrições de Crédito Público, a mobília do Campo de Santana, o Cristo de ouro”...
O Doutor Margaride recebeu “três contos de réis e o relógio”... À Vicência foram deixadas “as roupas de cama”.
Justino entendia perfeitamente a angústia de Teodorico... Por fim filosofou que o óculo do comendador fora-lhe concedido para que, com ele, pudesse “ver o resto de longe”.
(...)
Por um bom tempo
refletiu sobre a sua condição e o quanto a velha o humilhara com o injurioso
testamento.
Pensou que seria bom “ultrajar
o seu cadáver”, cuspir-lhe na cara e furar o ventre apodrecido. Depois, por um
momento, contentou-se em invocar as forças da natureza contra o seu túmulo...
Desejou que nenhuma árvore lhe fornecesse sombra e que os ventos levassem tudo
quanto era lixo para cima dela.
De tão revoltado,
invocou o demônio... Sugeriu entregar-lhe a alma em troca das terríveis torturas
que ele podia provocar à alma da velha... Atordoado, considerou que o diabo não
a encontraria, então gritou implorando a Deus que a escorraçasse do céu. E
comprometeu-se a destruir a pauladas qualquer mausoléu que construíssem em sua
homenagem.
Profundamente
amargurado, cogitou escrever coisas horrendas aos jornais, dando a entender que
ela se prostituía às tardes, “no sótão, de óculos negros e em fralda!”
(...)
Tanto se dedicou à tarefa de odiar que esgotou-se física e emocionalmente...
Deixou-se cair na pobre cama e adormeceu.
A noite apenas iniciava quando o senhor Pita apareceu para lhe entregar
o embrulho que ele adivinhou ser o do óculo. A mensagem que Justino anexara, “Aí
vai a modesta herança!", não deixava a menor dúvida.
Depois de acender uma vela, o rapaz pegou o
óculo e chegou junto da janela... Aproximou o instrumento dos olhos...
Sentiu-se como se estivesse numa embarcação perdida em meio a violentas
águas... De onde estava pôde avistar, apesar da noite que descia, o Senhor dos
Passos, imaginou o Casimiro em seu leito de moribundo cercado pelas pratas, e
também o Negrão, com suas galochas a passear entre as árvores da quinta do Mosteiro.
(...)
Não estava sendo
fácil digerir o testamento... Era bem como o tabelião havia lhe dito: sarcasticamente,
a velha lhe deixara o óculo... Através dele contemplaria “o resto da herança”.
O que seria dele? Tinha apenas uns trocados e teria de se “debater
através da cidade e da vida”... Com violência atirou o óculo, que rolou para perto
da chapeleira. Com tristeza notou que ali estavam os dois símbolos de sua
tumultuada existência (o capacete que o acompanhara na esplendorosa viagem à
Terra Santa; o óculo, que representava a sua penúria).
Quantas
alegrias tinha vivido com o capacete? Com ele percorrera várias paragens
descritas na Bíblia... Suas expectativas de então haviam sido as mais
promissoras (seria o herdeiro da tia milionária; aproveitaria tudo o que a boa
vida podia oferecer-lhe)... Mas restara-lhe apenas o óculo, acessório que
parecia anunciar os difíceis tempos que se aproximavam.
(...)
Como se explica uma
desgraça dessa magnitude?
Simplesmente
não podia entender... Os embrulhos de papel pardo haviam sido trocados! Uma
infelicidade inexplicável... Em vez de uma santa relíquia, entregara à tia a
camisa enfestada de pecado da Maricocas! Justamente àquela velha que esperava dele
(apenas) uma postura recatada, beata e afastada das “relaxações”!
E pensar que depois
ainda decidiu ceder o embrulho à pobre mulher que choramingava junto à fonte
com seu esquálido filho! E havia feito isso “num impulso de caridade”, pois ela
poderia negociar a camisa com as prostitutas que instalavam nas proximidades da
muralha do templo!
Foi
demais.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto