Crispim fez questão, e assim marcaram o encontro para o domingo às dez horas.
Teodorico compareceu ao Hotel Central... Almoçaram e seguiram para a Ribeira numa encantadora embarcação.
O domingo foi de agradável passeio pelo rio e pelo campo e Teodorico conheceu Dona Jesuína, a irmã do Crispim... Ela contava trinta e dois anos, era ruiva e zarolha. O Raposo aprovou a robustez de seus peitos. Além disso, sua pele lembrava a das maçãs maduras e seu sorriso era de incomparável brancura.
(...)
Então, ao entardecer,
enquanto retornava, Teodorico dedicou-se a pensar sobre a donzela.
Ela tinha formação nas
Salésias... Conhecia de Geografia e sabia dizer quais eram os rios da China...
Seu conhecimento de História era espantoso e lhe permitia falar a respeito de
todos os reis da França. Quis que Teodorico lhe contasse a respeito de sua
romagem à Terra Santa e passou a chamá-lo “Teodorico-Coração-de-Leão”.
(...)
Pode-se dizer que os dois
se entenderam bem.
Não foi por acaso que
Teodorico passou a jantar aos domingos na Pampulha.
Dona Jesuína preparava um
prato de ovos queimados e permanecia por longo tempo a contemplar com seu “olho
vesgo” a face barbuda do moço.
Certa tarde, o Crispim
pôs-se a falar da família real portuguesa... Teceu elogios diversos, sobretudo
em relação ao respeito à Constituição e à graça e bondade da rainha... Depois
do café, desceram ao jardim e, enquanto caminhavam, Teodorico aproximou-se do
ouvido de Dona Jesuína e lhe disse que ela sairia uma boa rainha... Acrescentou
que isso até poderia vingar se ele mesmo fosse rei...
As palavras insinuantes a
fizeram corar.
(...)
Foi na véspera do natal que o Crispim chegou à mesa de trabalho de
Teodorico para uma prosa diretamente relacionada àquela tarde no jardim... De
súbito referiu-se à ideia de a irmã se tornar rainha “se o Raposinho fosse
rei”... Na sequência perguntou ao funcionário se em seu peito batia um coração
que devotava amor à mana Jesuína.
Teodorico sabia o quanto o patrão conservador “admirava a paixão e o
ideal”... Estava a ponto de garantir que nutria sincera paixão por sua irmã,
algo como o fanatismo que se tem pelo brilho de remota estrela... Mas logo
conteve a mentira ao lembrar-se da “voz altiva e pura da Travessa da Palha”.
Então disse que não era amor o que trazia em seu
coração, todavia a achava “um belo mulherão” e apreciava o dote... Acrescentou
que lhe seria um bom marido.
No mesmo instante, o
Crispim estendeu-lhe a mão para os cumprimentos.
(...)
Os registros das memórias afirmam que depois veio o casamento, a
paternidade e a realização pessoal...
Teodorico tornou-se
proprietário... Passou a possuir carruagem e a comenda de Cristo... Todos do
bairro passaram a tê-lo em boa consideração...
O doutor Margaride voltou a
fazer parte de seu círculo social e a visitá-lo assiduamente aos domingos. O
magistrado sempre ficava para jantar e confabular. Ele não se cansava de dizer que Teodorico, além de ser um homem viajado, era do mundo das letras e
exemplar patriota.
(...)

Para ele, Teodorico não
devia pensar duas vezes... As árvores do solar deram sombra à sua mãe e ao seu
pai... O certo a fazer era comprar a propriedade que ele tanto desejara no
passado.
Outro que insistiu na
aquisição foi o Crispim, que dizia que era a um Raposo que o solar devia
pertencer. E mais... Depois de sacramentar a compra, o cunhado devia erguer um
belo torreão para dar-lhe a apropriada fisionomia de castelo.
E foi isso mesmo que
Teodorico fez. Comprou a quinta do Mosteiro “numa véspera de Páscoa”... Assinou
os documentos no cartório do Justino junto com o procurador do Negrão.
Desde então, Teodorico tornou-se definitivamente “o senhor do Mosteiro”.
O
Margaride o elogiava por todas as suas qualificações e dizia que o Estado lhe
devia “o título de Barão do Mosteiro”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_24.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto