domingo, 26 de março de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – registros de 13 de junho de 1895 – as quatro filhas do velho Botelho passaram viver na mesma rua de tia Agostinha; o estranho caso da morte e ressureição de Donana

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/03/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_8.html antes de ler esta postagem:

Depois daquela história da “ressurreição do rajá” (postagem de 25/março de 2017) que aparece em “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, de Júlio Verne, deu vontade de voltar a tratar do diário de Helena Morley. Especificamente dos registros de 13 de junho de 1895.
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Ela explica que fazia pouco tempo que uma nova família passara a viver numa casa na localidade do “Jogo da Bola”, que era como um bairro mais afastado.
A casa ficava na mesma rua da tia Agostinha. Sabia-se que quatro moças moravam nela, mas ninguém as conhecia muito bem. O pai delas era certo Botelho, fazendeiro no Serro, e por isso tornou-se comum referirem-se a elas como “as Botelhos”.
Chamava a atenção o fato de passarem a maior parte do tempo na janela. Tudo indicava que não tinham nenhuma ocupação regular já que à tarde costumavam acomodar-se na calçada para passar o tempo.
Não se pode dizer que fossem orgulhosas, pois sempre que eram cumprimentadas respondiam “de cara aberta”.
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Somos levados a entender que o seu Botelho era “homem de fazenda” porque não era visto na cidade.
Helena explica que uma das moças era rica e que as outras três viviam às custas dela. Elas eram “solteironas e pobres. A rica se chamava Donana (dona Ana), era a mais velha e também mais gorda.
Depois de algum tempo, as moças se habituaram de tal forma aos cumprimentos de Helena e da tia Agostinha que sempre que elas passavam em frente à casa trocavam umas poucas palavras... As irmãs convidavam-nas a entrar, mas as duas sempre recusaram.
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Aconteceu que numa das tardes Helena e a tia notaram que a casa das irmãs estava com uma “armação de defunto” (panos pretos com rendados dourados caíam dos portais).
Tia Agostinha achou que faziam bem em entrar. Helena não alimentava nenhum tipo de rejeição aos velórios e outros cerimoniais fúnebres... Pode-se dizer mesmo que ela não perdia esse tipo de ocasião. Também por isso concordou com a tia no mesmo instante.
Entraram na casa das Botelhos e viram a irmã rica estendida no caixão. Elas não puderam deixar de notar que a moça parecia dormir muito sossegadamente, seu aspecto era tão bom que foi difícil crer que ela estivesse morta.
As três outras explicaram que a mais velha morreu de um “sono pesado” porque dormiu e não acordou mais. Para Helena, as moças falavam com tanta desenvoltura “que nem parecia que havia morte em casa”.
Depois que saíram, a tia Agostinha comentou que aquela alegria toda só podia ser porque as irmãs mais novas sabiam da riqueza que a defunta deixaria... E emendou que “o dinheiro é que tira o sentimento das famílias”.
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No dia seguinte não houve nenhum sepultamento. Sem dúvida, algo muito estranho... Sobretudo porque na casa das Botelhos o pano preto tinha sido retirado. Helena queria saber o que elas tinham feito do cadáver. Aquilo não podia ficar sem uma explicação!
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A curiosidade de Helena a levou a passar novamente em frente à casa das Botelhos. É bem provável que sua tia Agostinha a acompanhasse porque ela registrou sem eu diário que “estávamos com os olhos pregados na casa” para conferir a verdade a respeito daquele mistério.
Por sorte, a cozinheira saía naquele mesmo instante. Helena a abordou, cumprimentou-a e quis saber por que não houve enterro. A mulher mostrou-se espantada com a pergunta porque àquela altura todos já sabiam os motivos.
A cozinheira explicou que “siá Donana tornou a viver”. Helena perguntou como aquilo era possível. Um tanto confusamente, a mulher respondeu que Donana ‘tava morta, mas não ‘tava... Completou dizendo que “parecia que ‘tava”.
Naturalmente a pobre mulher tinha opinião a respeito do que ocorrera, mas não se sentia confortável para falar... Disse que aquilo só podia ser “coisa feita”.
Justificou-se ao perguntar se Helena já vira um morto escutar o que os vivos “‘tão falando”.
Foi a própria Donana quem disse que do caixão podia ouvir as irmãs brigarem por causa de seus bens (vacas, prata e tudo o mais). Donana podia ouvir, mas não podia reagir, então ficava muito nervosa, embora permanecesse num estranho estado de pesado sono.
Quando o enterro estava para sair, um dos homens deixou escapar um dos lados do pesado caixão. Quando ele bateu no piso, a defunta despertou.
A cozinheira disse que o susto de Donana ao “reviver” deve ter sido muito maior “do que o da morte”. Logo que despertou, passou a discutir com as irmãs e as expulsou da casa por causa do interesse delas apenas em suas coisas de valor.
O seu Botelho já havia sido chamado para levá-las para a fazenda. Donana preferia viver sozinha. Enquanto isso, as malvadas permaneciam trancadas no quarto e não saíam nem mesmo para se alimentar.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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