O cortejo era dos mais estranhos para Fogg e seu empregado Passepartout. Mas o general Cromarty entendia o que estava acontecendo e é por isso que não conseguia esconder sua tristeza.
Ele virou-se para o parse e sentenciou que aquilo se tratava de um “sutty”. Com um gesto, o rapaz respondeu afirmativamente ao mesmo tempo em que levava o dedo aos lábios indicando que era preciso manter silêncio total até que a procissão se encerrasse completamente.
(...)
O cortejo se foi e
novamente os cânticos e instrumentos foram se extinguindo até que tudo voltasse
a ser tomado pelo silêncio. Então Fogg quis saber o que era exatamente “sutty”.
O general explicou que era um sacrifício humano que, apesar da violenta
impressão que podia despertar à consciência dos civilizados ocidentais, era
algo voluntário.
Com isso ele queria dizer que a participação da bela jovem
que tinham acabado de ver sendo conduzida pelos sacerdotes brâmanes não era por
acaso. Todo aquele povo passaria a noite na floresta e nas primeiras horas do
dia seguinte assistiria ao seu sacrifício numa pira, onde seria queimada viva.
Phileas Fogg e Passepartout se manifestaram, mas apenas o criado francês
parecia expressar indignação. Cromarty explicou que o funeral era do marido
dela. Como puderam concluir, o tipo era um rico rajá, um dos príncipes que
dominavam a região do Bundelkund.
(...)
Fogg não entendia como os ingleses não conseguiram
acabar de vez com aqueles costumes bárbaros. O general respondeu que na maior
parte da Índia aquele tipo de sacrifício havia sido banido, mas em territórios
como o do Bundelkund, onde os britânicos não exerciam influência, o “sutty” era
comum. Em síntese, a parte mais ao norte da cadeia das Vindhias era palco de “assassinatos
e pilhagens incessantes”.
Passepartout só pensava na crueldade que seria cometida contra a jovem.
Queimada viva! O general confirmou e acrescentou que pelo visto ela mesma não
teria outra saída, já que sua existência seria insustentável.
O militar explicou que no caso de ela não se submeter ao ritual seus
familiares a repeliriam. Ela passaria a ser considerada uma “imunda”... Seus
cabelos seriam cortados e, na condição de abandonada, provavelmente lhe dariam
apenas um punhado de arroz. Morreria como definham os cães sarnentos.
Para não terminarem a vida de modo tão trágico, jovens esposas como
aquela que viram eram levadas a se entregarem ao suplício. Evidentemente não é
porque fossem fanáticas religiosas que se submetiam ao ritual macabro.
(...)
Cromarty revelou que quando residia em Bombaim, soube do caso de uma
jovem viúva que solicitou permissão ao governador inglês para que fosse
queimada viva com o cadáver do marido. Logicamente o administrador indeferiu o
pedido. A saída que a mulher encontrou foi buscar o amparo de um rajá que
reinava em território independente, onde o cerimonial macabro de fato ocorreu.
O relato do militar foi
ouvido com atenção. O parse gesticulava com a cabeça dando a entender que conhecia
aquela história. No final da falação de Cromarty, ele disse que o que tinham
acabado de presenciar era diferente porque o sacrifício que ocorreria na manhã
seguinte não era voluntário.
Cromarty estranhou a observação
do guia e disse que, apesar de a moça estar sendo praticamente arrastada, ela
não oferecia resistência. Então tudo indicava que o ritual não tinha nada de
forçado.
O parse explicou que
a jovem estava entorpecida pela fumaça de cânhamo e ópio, por isso não lutava
para sobreviver. A procissão percorreria mais uns três quilômetros até chegar
ao templo de Pillaji. Todos passariam a noite no local. O sacrifício ocorreria
tão logo o dia amanhecesse.
(...)
O guia dirigiu-se ao elefante para desatá-lo da árvore onde estava
preso. Tomou a sua posição e estava pronto para comandar os passos de Kiuni
quando o senhor Fogg o fez parar.
Ele perguntou ao general o
que ele pensava a respeito de salvarem a jovem que estava sendo conduzida ao
sacrifício.
Cromarty soltou uma exclamação... Fogg respondeu que
tinha “doze horas de folga” e podia “consagrá-las” à libertação da moça.
Cromarty reconhecia que o excêntrico Fogg comandava a situação e não fez
nenhuma objeção. Apenas comentou com certa admiração que podia-se notar que o
companheiro também era “homem de coração”.
Phileas Fogg respondeu que eventualmente podia
dedicar-se àquele tipo de iniciativa desde que tivesse tempo.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/03/a-volta-ao-mundo-em-oitenta-dias-de_16.html
Leia: A
Volta ao Mundo em Oitenta Dias – Coleção “Eu Leio”. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto