quarta-feira, 15 de maio de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – ideias a respeito da alma no início do século XVI; Girolamo Galateo e o juízo sobre o “adormecimento das almas dos beatos”; anabatistas e a doutrina a respeito da “anima”; Melchiori, seu comportamento e julgamento pela Inquisição; Menocchio cita “Discorsi predicabili” para se explicar no tribunal; seu belo sermão aos inquisidores

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/04/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html antes de ler esta postagem:

Vimos que o conteúdo do depoimento de Menocchio sobre as várias “almas” era produto de mais um de seus aprendizados no Fioretto dela Bibbia... Vimos o fragmento escolhido por Ginzburg que confirma a afirmação. De acordo com o Fioretto, “Espírito” seria a alma que se manifesta no ato da respiração do organismo... Menocchio, como sabemos, fazia uma distinção entre a alma (que é mortal) e o espírito (imortal).
Ginzburg nos remete aos inícios do século XVI, aos “ambientes averróistas” para explicar a distinção evidenciada pelo moleiro... Professores, filósofos e médicos de Pádua influenciados pelas ideias de Pietro Pomponazzi (para este filósofo que lecionou na cidade, a imortalidade da alma era dogma de fé; filosoficamente não haveria como refletir a respeito) a morte do corpo determina simultaneamente a da alma individual (esta é, a partir das ideias de Averróis, “distinta do intelecto ativo”)...
Esses juízos influenciaram a religião... E foi o franciscano Girolamo Galateo que após os estudos em Pádua anunciou que “as almas dos beatos dormem até o dia do Juízo”... Por heresia, Galateo foi condenado à prisão perpétua. Mas ele parece ter influenciado Paolo Ricci (mais tarde conhecido como Camillo Renato) na formulação de sua doutrina referente ao “sono das almas”. Para Ricci, a anima perece com o corpo, enquanto que o animus deve ressurgir no final dos tempos para o aguardado Juízo Final... Depois de debates acirrados, anabatistas vênetos adotaram essa doutrina e pregavam que “a vida é a anima; enquanto que o espírito que dá vida ao ser humano ruma para Deus após a morte do corpo; a anima segue para a terra (não mais sabe o que é bem ou mal), dorme até o dia do Juízo”.
No fim dos tempos os justos seriam ressuscitados, enquanto que os malvados não retornariam à vida, pois “não existe outro inferno além do sepulcro”... Provavelmente esses pensamentos chegaram a Menocchio através do pároco de Polcenigo, Giovan Daniele Melchiori... Este amigo de infância do moleiro havia sido julgado pelo tribunal da Inquisição de Concordia pouco tempo antes de nosso personagem... Sobre Melchiori, destaca-se que foi reconhecido como “ligeiramente suspeito de heresia”, e as acusações contra ele iam desde “ser de putaria e rufião” ao “desrespeito com as coisas sacras” (hóstias consagradas, por exemplo)... Mas o interesse de O Queijo e os Vermes, aqui, está na afirmação de Menocchio quando falava com os seus conterrâneos em praça pública sobre sua certeza de que “vai-se para o paraíso só no dia do Juízo”.
Durante os interrogatórios, Menocchio não admitiu que tivesse proferido aquelas opiniões... Por outro lado, deu a entender que ensinava sobre a “diferença entre morte corporal e morte espiritual”... E nisso se baseava em um livro de um padre do qual não se recordava o nome... Lembrava-se que era de Fano, e que tinha escrito um livro chamado Discorsi predicabili. Em relação ao depoimento em torno do tema e do citado texto, Gunzburg sentencia que o moleiro “ministra aos inquisidores, com segurança, um verdadeiro sermão”. Por tratar-se de belo e significativo trecho documental, sua reprodução se justifica. O interrogado disse:

“Eu me lembro de ter dito, falando de morte corporal e espiritual, que existem dois tipos de morte, uma muito diferente da outra. A morte corporal é comum a todos; a morte espiritual nos priva da vida e da graça; a morte corporal nos priva dos amigos, a morte espiritual dos santos e dos anjos; a morte corporal nos priva dos bens terrenos, a morte espiritual dos bens celestes; a morte corporal nos priva dos lucros do mundo, a morte espiritual nos priva de qualquer mérito de Jesus Cristo, nosso salvador; a morte corporal nos priva do reino terrestre, a morte espiritual do reino celeste; a morte corporal nos priva da razão, a morte espiritual da razão e do intelecto; a morte corporal nos priva do movimento corpóreo e a morte espiritual faz com que nos tornemos imóveis como uma pedra; a morte corporal faz o corpo cheirar mal, a morte espiritual faz a alma cheirar mal; a morte corporal dá o corpo à terra, a morte espiritual a alma ao inferno; a morte dos ruins se chama péssima, como se lê no salmo de Davi mors peccatorum pessima, a morte dos bons é chamada preciosa, como se lê no mesmo, pretiosa in conspettu Domini mors sanctorum eius; a morte dos ruins se chama morte, a morte dos bons se chama sono, como se lê em São João Evangelista, Lazzarus amicus noster dormit, e em outro local non est mortua puella sed dormit; os ruins temem a morte e não querem morrer, os bons não temem a morte, mas dizem com São Paulo cupio dissolvi et esse cum Christo. E esta é a diferença entre a morte corporal por mim entendida e pregada, e, se eu tiver caído em erro, estou pronto a me redimir e me modificar”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/05/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_20.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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