Vimos que o conteúdo do depoimento de Menocchio sobre as várias “almas” era produto de mais um de seus aprendizados no Fioretto dela Bibbia... Vimos o fragmento escolhido por Ginzburg que confirma a afirmação. De acordo com o Fioretto, “Espírito” seria a alma que se manifesta no ato da respiração do organismo... Menocchio, como sabemos, fazia uma distinção entre a alma (que é mortal) e o espírito (imortal).
Ginzburg nos remete aos inícios do século XVI, aos “ambientes averróistas” para explicar a distinção evidenciada pelo moleiro... Professores, filósofos e médicos de Pádua influenciados pelas ideias de Pietro Pomponazzi (para este filósofo que lecionou na cidade, a imortalidade da alma era dogma de fé; filosoficamente não haveria como refletir a respeito) a morte do corpo determina simultaneamente a da alma individual (esta é, a partir das ideias de Averróis, “distinta do intelecto ativo”)...
Esses juízos influenciaram a religião... E foi o franciscano Girolamo Galateo que após os estudos em Pádua anunciou que “as almas dos beatos dormem até o dia do Juízo”... Por heresia, Galateo foi condenado à prisão perpétua. Mas ele parece ter influenciado Paolo Ricci (mais tarde conhecido como Camillo Renato) na formulação de sua doutrina referente ao “sono das almas”. Para Ricci, a anima perece com o corpo, enquanto que o animus deve ressurgir no final dos tempos para o aguardado Juízo Final... Depois de debates acirrados, anabatistas vênetos adotaram essa doutrina e pregavam que “a vida é a anima; enquanto que o espírito que dá vida ao ser humano ruma para Deus após a morte do corpo; a anima segue para a terra (não mais sabe o que é bem ou mal), dorme até o dia do Juízo”.

Durante os interrogatórios, Menocchio não admitiu que tivesse proferido aquelas opiniões... Por outro lado, deu a entender que ensinava sobre a “diferença entre morte corporal e morte espiritual”... E nisso se baseava em um livro de um padre do qual não se recordava o nome... Lembrava-se que era de Fano, e que tinha escrito um livro chamado Discorsi predicabili. Em relação ao depoimento em torno do tema e do citado texto, Gunzburg sentencia que o moleiro “ministra aos inquisidores, com segurança, um verdadeiro sermão”. Por tratar-se de belo e significativo trecho documental, sua reprodução se justifica. O interrogado disse:
“Eu me lembro de ter dito, falando de morte corporal e espiritual, que existem dois tipos de morte, uma muito diferente da outra. A morte corporal é comum a todos; a morte espiritual nos priva da vida e da graça; a morte corporal nos priva dos amigos, a morte espiritual dos santos e dos anjos; a morte corporal nos priva dos bens terrenos, a morte espiritual dos bens celestes; a morte corporal nos priva dos lucros do mundo, a morte espiritual nos priva de qualquer mérito de Jesus Cristo, nosso salvador; a morte corporal nos priva do reino terrestre, a morte espiritual do reino celeste; a morte corporal nos priva da razão, a morte espiritual da razão e do intelecto; a morte corporal nos priva do movimento corpóreo e a morte espiritual faz com que nos tornemos imóveis como uma pedra; a morte corporal faz o corpo cheirar mal, a morte espiritual faz a alma cheirar mal; a morte corporal dá o corpo à terra, a morte espiritual a alma ao inferno; a morte dos ruins se chama péssima, como se lê no salmo de Davi mors peccatorum pessima, a morte dos bons é chamada preciosa, como se lê no mesmo, pretiosa in conspettu Domini mors sanctorum eius; a morte dos ruins se chama morte, a morte dos bons se chama sono, como se lê em São João Evangelista, Lazzarus amicus noster dormit, e em outro local non est mortua puella sed dormit; os ruins temem a morte e não querem morrer, os bons não temem a morte, mas dizem com São Paulo cupio dissolvi et esse cum Christo. E esta é a diferença entre a morte corporal por mim entendida e pregada, e, se eu tiver caído em erro, estou pronto a me redimir e me modificar”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/05/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_20.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto