Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/04/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html
antes de ler esta postagem:
Vimos que o conteúdo
do depoimento de Menocchio sobre as várias “almas” era produto de mais um de
seus aprendizados no Fioretto dela Bibbia...
Vimos o fragmento escolhido por Ginzburg que confirma a afirmação. De acordo
com o Fioretto, “Espírito” seria a
alma que se manifesta no ato da respiração do organismo... Menocchio, como
sabemos, fazia uma distinção entre a alma (que é mortal) e o espírito
(imortal).
Ginzburg
nos remete aos inícios do século XVI, aos “ambientes averróistas” para explicar
a distinção evidenciada pelo moleiro... Professores, filósofos e médicos de
Pádua influenciados pelas ideias de Pietro Pomponazzi (para este filósofo que
lecionou na cidade, a imortalidade da alma era dogma de fé; filosoficamente não
haveria como refletir a respeito) a morte do corpo determina simultaneamente a
da alma individual (esta é, a partir das ideias de Averróis, “distinta do
intelecto ativo”)...
Esses juízos influenciaram
a religião... E foi o franciscano Girolamo Galateo que após os estudos em Pádua
anunciou que “as almas dos beatos dormem até o dia do Juízo”... Por heresia,
Galateo foi condenado à prisão perpétua. Mas ele parece ter influenciado Paolo
Ricci (mais tarde conhecido como Camillo Renato) na formulação de sua doutrina
referente ao “sono das almas”. Para Ricci, a anima perece com o corpo, enquanto que o animus deve ressurgir no final dos tempos para o aguardado Juízo
Final... Depois de debates acirrados, anabatistas vênetos adotaram essa
doutrina e pregavam que “a vida é a anima;
enquanto que o espírito que dá vida ao ser humano ruma para Deus após a morte
do corpo; a anima segue para a terra
(não mais sabe o que é bem ou mal), dorme até o dia do Juízo”.
No
fim dos tempos os justos seriam ressuscitados, enquanto que os malvados não
retornariam à vida, pois “não existe outro inferno além do sepulcro”...
Provavelmente esses pensamentos chegaram a Menocchio através do pároco de
Polcenigo, Giovan Daniele Melchiori... Este amigo de infância do moleiro havia
sido julgado pelo tribunal da Inquisição de Concordia pouco tempo antes de
nosso personagem... Sobre Melchiori, destaca-se que foi reconhecido como
“ligeiramente suspeito de heresia”, e as acusações contra ele iam desde “ser de
putaria e rufião” ao “desrespeito com as coisas sacras” (hóstias consagradas,
por exemplo)... Mas o interesse de O
Queijo e os Vermes, aqui, está na afirmação de Menocchio quando falava com
os seus conterrâneos em praça pública sobre sua certeza de que “vai-se para o
paraíso só no dia do Juízo”.
Durante
os interrogatórios, Menocchio não admitiu que tivesse proferido aquelas
opiniões... Por outro lado, deu a entender que ensinava sobre a “diferença
entre morte corporal e morte espiritual”... E nisso se baseava em um livro de
um padre do qual não se recordava o nome... Lembrava-se que era de Fano, e que
tinha escrito um livro chamado Discorsi
predicabili. Em relação ao depoimento em torno do tema e do citado texto,
Gunzburg sentencia que o moleiro “ministra aos inquisidores, com segurança, um
verdadeiro sermão”. Por tratar-se de belo e significativo trecho documental,
sua reprodução se justifica. O interrogado disse:
“Eu me lembro de ter dito, falando de morte
corporal e espiritual, que existem dois tipos de morte, uma muito diferente da
outra. A morte corporal é comum a todos; a morte espiritual nos priva da vida e
da graça; a morte corporal nos priva dos amigos, a morte espiritual dos santos
e dos anjos; a morte corporal nos priva dos bens terrenos, a morte espiritual
dos bens celestes; a morte corporal nos priva dos lucros do mundo, a morte
espiritual nos priva de qualquer mérito de Jesus Cristo, nosso salvador; a
morte corporal nos priva do reino terrestre, a morte espiritual do reino
celeste; a morte corporal nos priva da razão, a morte espiritual da razão e do
intelecto; a morte corporal nos priva do movimento corpóreo e a morte
espiritual faz com que nos tornemos imóveis como uma pedra; a morte corporal
faz o corpo cheirar mal, a morte espiritual faz a alma cheirar mal; a morte
corporal dá o corpo à terra, a morte espiritual a alma ao inferno; a morte dos
ruins se chama péssima, como se lê no salmo de Davi mors peccatorum pessima, a morte dos bons é chamada preciosa, como
se lê no mesmo, pretiosa in conspettu
Domini mors sanctorum eius; a morte dos ruins se chama morte, a morte dos
bons se chama sono, como se lê em São João Evangelista, Lazzarus amicus noster dormit, e em outro local non est mortua puella sed dormit; os
ruins temem a morte e não querem morrer, os bons não temem a morte, mas dizem
com São Paulo cupio dissolvi et esse cum
Christo. E esta é a diferença entre a
morte corporal por mim entendida e pregada, e, se eu tiver caído em erro, estou
pronto a me redimir e me modificar”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/05/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_20.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto