domingo, 19 de maio de 2013

“Decamerão”, de Giovanni Boccaccio – Sétima novela do primeiro dia – contada por Filóstrato – Bergamino conta a história de Primasso e do abade de Cligni ao senhor Scala; o religioso se importava tanto com as aparências que não reconhecia no esfarrapado Bergamino alguém de relevância social; arrependimento e reparação dos erros; aprendizado do senhor Scala e mudança no tratamento dispensado a Bergamino – Segunda Parte

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/05/decamerao-de-giovanni-boccaccio-setima.html antes de ler esta postagem:

Então Bergamino contou ao senhor Cane della Scala uma história que é mais ou menos a que segue:

“Primasso era homem de muitas qualidades retóricas, um tipo que argumentava (inclusive em versos) como poucos... Isso o fez reconhecido por todos. Sua fama foi tão longe que mesmo quem não o conhecia pessoalmente, certamente tinha ouvido falar a seu respeito.
Certa vez, quando Primasso encontrava-se em Paris, passou por algumas dificuldades financeiras. Ele tinha ouvido falar do abade de Cligni, religioso reconhecido por sua honra e dignidade na Igreja, e também por sua importância na administração de muitos bens.
Primasso ficou sabendo que o abade não negava dar de comer e beber a todos os que chegassem à sua rica propriedade. Estando ele próprio em necessidade e sendo homem que valorizava a nobreza e os costumes dignos como os do religioso, quis conhecê-lo também para que pudesse ser socorrido, embora soubesse que teria de percorrer seis milhas para chegar à abadia.
O moço decidiu, então, que deveria sair de Paris ao amanhecer, pois assim chegaria ao seu destino em horário de refeição... Ficou um tanto preocupado porque deveria fazer o trajeto a pé e, desconhecendo a região, poderia se perder. Sob suas vestes levou três pães que o alimentariam em caso de perder-se pelo caminho.
Felizmente, para ele tudo deu certo. Chegou ao local onde o abade vivia pouco antes do horário da refeição... As muitas mesas dispostas com vários e abundantes pratos levaram Primasso a constatar que, de fato, a fama do abade era justificada... Todos os presentes foram convidados a lavarem as mãos, pois era chegado o momento de se alimentarem. As pessoas se ajeitaram às mesas enquanto aguardavam a entrada do abade. Primasso ficou acomodado numa cadeira que dava bem de frente para a porta por onde o anfitrião deveria entrar...
O abade foi informado de que assim que ele desejasse a refeição se iniciaria, pois tudo estava devidamente arranjado. De modo solene, a porta se abriu e a primeira visão que ele teve foi a de Primasso... O religioso não gostou do que viu... De fato, o andarilho não estava bem trajado... A peregrinação que fizera o tornou sujo e até esfarrapado... O abade teve tanta repugnância que decidiu voltar por onde havia entrado e a única coisa que pensava era sobre o ‘tipo de gente a quem ele dava de comer’... Perguntou aos serviçais se alguém conhecia aquele tipo que se encontrava bem de frente à porta... Mas ninguém sabia de onde aquele homem tinha surgido...
Obviamente os convivas não iniciaram a refeição... Mas Primasso estava faminto, então decidiu pegar o primeiro dos pães que trazia e comeu ali mesmo enquanto a ceia não iniciava... Passou algum tempo e o abade pediu que verificassem se o tipo já havia se retirado... Ele foi informado de que o intruso continuava à mesa e que devorava um pão... O abade então disse que era melhor que ele se alimentasse daquilo que lhe pertencia porque não permitiria que comesse da sua refeição.
As ceias que promovia eram ocasiões sociais... Nunca aconteceu de um tipo em andrajos se postar à mesa. O religioso esperava que Primasso se cansasse de esperar e desistisse da ceia... A demora foi tanta que ele se alimentou dos dois pães que ainda lhe restavam... E sobre isso o abade também foi informado... A situação levou o clérigo a refletir sobre os seus atos mesquinhos... Há muitos anos vinha dando de comer às pessoas que ali chegavam sem se importar se eram pobres ou ricas... Tanto pensou a respeito que imaginou que aquele que não desistia da mesa devia ser alguma personalidade notável. Foi assim que procurou saber de quem se tratava e encabulou-se ao ser inteirado de que aquele era o famoso Primasso, que estava ali exatamente para testemunhar a magnificência do abade... Obviamente isso o deixou muito envergonhado... Então, para reparar o mal que fizera, ‘empenhou-se em honrá-lo de todos os modos’... Alimentou-o, deu-lhe vestes nobres, dinheiro, cavalo e o poder de decidir partir no momento em que considerasse melhor.
Primasso agradeceu ao abade e, com requinte, partiu de cavalo para Paris.”

O senhor Cane notou que aquela história apresentava personagens que se relacionavam à experiência que ele e Bergamino estavam vivenciando. Disse que entendera perfeitamente os ensinamentos daquelas palavras. Compreendeu os prejuízos que o outro auferiu, e enxergou nas próprias atitudes os motivos dos danos que o outro sofria... Admitiu que não era adequado permanecer tão avarento e mesquinho, e por isso estava disposto a afugentar de si aqueles vícios...
Então, seguindo o exemplo do abade arrependido da história, fez com que as dívidas que Bergamino contraiu na estalagem fossem pagas... Deu-lhe uma de suas próprias vestes e o equipou com um bom cavalo, permitindo-lhe a condição de decidir por “conta própria” se deveria partir ou permanecer pelo tempo que quisesse na região.
Fim da sétima novela.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/decamerao-de-giovanni-boccaccio-oitava.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.

Um abraço,
Prof.Gilberto

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