Lewis concordou que seria preferível não mais se envolverem com “demasiada intimidade”. Ele também se irritou com a reação da parceira... Com certa indiferença, esclareceu que o melhor que ela tinha a fazer era dormir.
Essa sua reação à indignação manifestada por Anne deixou-a ainda mais intrigada... Será que ele estava sendo sincero? A única culpada pelo mal-estar que experimentavam era ela?... Provavelmente devia ser isso mesmo... Em suas reflexões não se culpava exatamente por ter “mendigado as carícias”, mas por ter alimentado falsas esperanças.
Também para esse erro encontrava justificativa... Até então não pudera ter certeza da convicção de Lewis em relação à decisão de não mais amá-la... O que a confundia era a incoerência entre o que de fato esperava-se de um homem de decisões firmes e as brechas que deixava em algumas de suas posturas. Evidentemente ela se reportava à exacerbada harmonia que ele deixou transparecer a todos logo que chegaram a Parker.
No caso de Lewis, Anne imaginava que a sua pretensão fosse a de atestar a morte do passado e de tudo o que haviam experimentado juntos. Isso lhe doía, pois se tratava de “morte sem cadáver”... Nesse ponto ela retomou a lembrança do jovem Diego, sem um túmulo sobre o qual fosse possível derramar lágrimas.
(...)
Na manhã seguinte ele manifestou mais uma vez a sua lamentação
sentenciando que a temporada havia começado muito mal... Ela o interrompeu
dizendo que nada de grave ocorrera, disse que se habituaria e que a situação se
tornaria perfeita para ambos.
Lewis reforçou a ideia de que ainda podiam passar um
bom verão... Admitiu que ainda pudesse se entender muito bem com ela, sobretudo
quando não estava chorando...
Anne entendeu que ele não queria magoá-la, mas ao mesmo tempo notava que
não demonstrava se importar com os seus sentimentos.
(...)
Aquele verão tinha tudo para ser dos melhores...
Nas manhãs seguintes curtiram atravessar a represa de barco, subir as
dunas e alcançar a praia... Instalavam-se sossegadamente... De um lado viam que
as areias se mostravam “desertas e infinitas”... Do outro lado elas chegavam
até os altos-fornos e suas inflamadas chaminés.
Os dias ensolarados foram de constantes convites ao nado e ao
bronzeamento... Restava-lhes permanecer contemplando a bela paisagem
frequentada por aves brancas de longas pernas que procuravam alimento pela
areia.
À tarde retornavam para
casa carregando gravetos e pedaços de madeira... O gramado frequentado por
esquilos, borboletas e aves, era sempre convidativo a momentos de leitura. Era
exatamente a isso que Anne se dedicava. A certa distância ouvia o som constante
da máquina de escrever manipulada por Lewis.
Depois acendiam o fogo no
forno feito de tijolos... Anne descongelava um frango... Também colocavam
bistecas e milho para assar... Ouviam música, assistiam a filmes antigos ou
lutas de boxe na televisão. Aos poucos essa rotina se solidificou... Pode-se
dizer que, acomodado a ela, o casal resolveu satisfatoriamente a convivência.
(...)
Não poucas vezes
Dorothy aparecia sempre a elogiar a noite estrelada e os vagalumes...
Demonstrava todo o seu encantamento também pelas fogueiras dos que acampavam
nas dunas. Anne a ouvia com certa tristeza por saber que aquele tipo também
tinha um quê de estrangeiro ali, pois jamais aquela vida seria sua.
A solicitude de Dorothy (com seus conselhos inúteis e favores que
ninguém pedia) intrigava e incomodava. Quem queria saber daquele monte de
receitas, truques de limpeza ou artigos sobre novos e revolucionários
utensílios domésticos?
E o que dizer a respeito de
sua contradição? A moça não tinha sequer um cômodo próprio e assinava uma
revista de arquitetura especializada nas casas de multimilionários!
Lewis também se incomodava
com a intromissão. Certa vez sentenciou que jamais poderia viver com ela...
Em pensamento Anne concordou... E refletiu sobre
a própria condição... Era certo que a felicidade que aquele ambiente prometia
também não lhe dizia respeito.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/07/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-um.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto