terça-feira, 19 de julho de 2016

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – não havia vínculo que mantivesse Anne no evento de Belzunce; Julien e seus comentários maldosos sobre Paule; um manuscrito medíocre; a incômoda incerteza a respeito do próprio futuro e do trabalho com os pacientes da clínica psiquiátrica

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/07/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-no.html antes de ler esta postagem:

Considerando os seus princípios, Anne tinha motivos para desconfiar de todas as pessoas que se encontravam no encontro promovido por Belzunce... Achou por bem não permanecer por mais tempo, assim iniciou sua travessia pelo salão dando pequenos esbarrões...
Antes de se retirar deu satisfações a Paule dizendo-lhe que fizera a sua parte... A amiga podia telefonar-lhe para estabelecerem novo contato. A moça pediu-lhe tempo para um conselho, pois precisava ouvi-la a respeito do livro que finalizava... Gostaria de saber a sua opinião sobre lançar o primeiro capítulo em Vigilance.
Anne disse que dependia muito do conteúdo... Paule garantiu que estava pronto para ser lançado “ao leitor de um só jato”, todavia admitia que a Vigilance traria seriedade à sua produção.
A preocupação da autora dizia respeito muito mais à sua tentativa de desfazer a opinião que deviam ter sobre ela, “uma mulher que frequenta a alta roda e faz trabalhos manuais”...
Podemos imaginar Anne deixando escapar um suspiro angustiado ao pedir o manuscrito... Paule prometeu enviá-lo pela manhã e saiu na direção de Julien ao mesmo tempo em que se despedia dizendo que aguardaria telefonema da amiga.
(...)
Anne retirou-se e notou que Julien fazia o mesmo... O rapaz ainda comentou com ironia que Paule Mareuil era uma encantadora mulher... O que o aborrecia era o fato de tratar-se de “colecionadora” (provavelmente se referisse às conquistas amorosas da outra)... Anne sugeriu que ele também possuía coleções... De sua parte, Julien deixou claro que nunca mantivera “catálogos”.
Despediram-se.
(...)
Já em casa, Anne refletiu com tristeza sobre a condição de Paule, que pouco se importava com o fato de comentarem sua vida por aí (como Julien fizera).
Depois a considerou “dotada de razão”...
E avaliou que ela mesma, Anne, não era melhor do que as demais... Assumia sua maturidade e velhice em público de modo a (psicologicamente) anular o tempo de vida que ainda tinha pela frente... Ela mesma renunciava ao futuro e isso era uma defesa em relação às potenciais privações que viessem a lhe impor.
Orgulho? Talvez... Mas o mais provável era que se tratasse de prudência... Na verdade, Anne camuflava a saudade do tempo que havia perdido e “negava a velhice”... Quer dizer que ela sentia que por baixo da velhice (ninguém consegue esconder) sobrevivia uma “mulher jovem de exigências intatas”...
E sabia que essa sua “identidade jovial” não refloresceria jamais... “Nem mesmo com os beijos de Lewis”.
(...)

A leitura do manuscrito de Paule revelou, como se esperava, um texto medíocre...
O que fazer? Para a moça, “o fracasso não seria trágico”. Anne não se conformaria com a resignação da amiga.
Em contrapartida, sua postura em relação ao próprio trabalho era de inconformidade... Aí não cabia resignação! Sabia que estava perdendo o gosto pelo trabalho e pelas convenções que dele se esperava. Até tinha vontade de sugerir aos pacientes que não se curassem por entender que a “cura em excesso é um mal”!
Quem se dispusesse a avaliar o seu trabalho naquele inverno diria que o sucesso era a sua marca... A Anne psicanalista obtivera “curas difíceis”... Todavia em seu íntimo não se sentia totalmente envolvida no processo.
Perguntava-se até que ponto fazia bem em libertar os emocionalmente desequilibrados... Passou a duvidar da necessidade que se impunha a todos em relação aos reconfortantes sonos noturnos, às relações amorosas sem traumas, à capacidade “de agir, de escolher, de esquecer, de viver”...
A doutora sentia-se parecida com os seus pacientes.
Ela mesma não conseguia se interessar pelo mundo vasto ao mesmo tempo em que se via tentando arrancá-los de seus comportamentos maníacos e isolamento “em seus infortúnios mesquinhos”.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas