
Antes de se retirar deu satisfações a Paule dizendo-lhe que fizera a sua parte... A amiga podia telefonar-lhe para estabelecerem novo contato. A moça pediu-lhe tempo para um conselho, pois precisava ouvi-la a respeito do livro que finalizava... Gostaria de saber a sua opinião sobre lançar o primeiro capítulo em Vigilance.
Anne disse que dependia muito do conteúdo... Paule garantiu que estava pronto para ser lançado “ao leitor de um só jato”, todavia admitia que a Vigilance traria seriedade à sua produção.
A preocupação da autora dizia respeito muito mais à sua tentativa de desfazer a opinião que deviam ter sobre ela, “uma mulher que frequenta a alta roda e faz trabalhos manuais”...
Podemos imaginar Anne deixando escapar um suspiro angustiado ao pedir o manuscrito... Paule prometeu enviá-lo pela manhã e saiu na direção de Julien ao mesmo tempo em que se despedia dizendo que aguardaria telefonema da amiga.
(...)
Anne retirou-se e notou que Julien fazia o mesmo... O
rapaz ainda comentou com ironia que Paule Mareuil era uma encantadora mulher...
O que o aborrecia era o fato de tratar-se de “colecionadora” (provavelmente se
referisse às conquistas amorosas da outra)... Anne sugeriu que ele também
possuía coleções... De sua parte, Julien deixou claro que nunca mantivera “catálogos”.
Despediram-se.
(...)
Já em casa, Anne refletiu com tristeza sobre a condição de Paule, que pouco
se importava com o fato de comentarem sua vida por aí (como Julien fizera).
Depois a considerou “dotada de razão”...
E avaliou que ela mesma,
Anne, não era melhor do que as demais... Assumia sua maturidade e velhice em
público de modo a (psicologicamente) anular o tempo de vida que ainda tinha
pela frente... Ela mesma renunciava ao futuro e isso era uma defesa em relação
às potenciais privações que viessem a lhe impor.
Orgulho? Talvez... Mas o mais provável era que se tratasse de
prudência... Na verdade, Anne camuflava a saudade do tempo que havia perdido e “negava
a velhice”... Quer dizer que ela sentia que por baixo da velhice (ninguém
consegue esconder) sobrevivia uma “mulher jovem de exigências intatas”...
E sabia que essa sua “identidade
jovial” não refloresceria jamais... “Nem mesmo com os beijos de Lewis”.
(...)
A leitura do manuscrito de
Paule revelou, como se esperava, um texto medíocre...
O que fazer? Para a
moça, “o fracasso não seria trágico”. Anne não se conformaria com a resignação
da amiga.
Em contrapartida, sua postura em relação ao próprio trabalho era de
inconformidade... Aí não cabia resignação! Sabia que estava perdendo o gosto
pelo trabalho e pelas convenções que dele se esperava. Até tinha vontade de
sugerir aos pacientes que não se curassem por entender que a “cura em excesso é
um mal”!
Quem se dispusesse a
avaliar o seu trabalho naquele inverno diria que o sucesso era a sua marca... A
Anne psicanalista obtivera “curas difíceis”... Todavia em seu íntimo não se
sentia totalmente envolvida no processo.
Perguntava-se até que ponto fazia bem em libertar os
emocionalmente desequilibrados... Passou a duvidar da necessidade que se
impunha a todos em relação aos reconfortantes sonos noturnos, às relações
amorosas sem traumas, à capacidade “de agir, de escolher, de esquecer, de viver”...
A doutora sentia-se parecida com os seus pacientes.
Ela mesma não conseguia se interessar pelo mundo
vasto ao mesmo tempo em que se via tentando arrancá-los de seus comportamentos
maníacos e isolamento “em seus infortúnios mesquinhos”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/07/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-uma.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto