O Governador chegou à praça do mercado e encontrou os cidadãos na mais absoluta normalidade... Alegrou-se ao saber que tudo estava exatamente como se nada de anormal tivesse ocorrido... É verdade que um “homem do povo” dirigiu-lhe palavras irônicas, mas ele não se importou...
Pelo contrário! Emendou que, saber que para o povo tudo continuava “na mesma”, o deixava realizado... E sintetizou: “nada é bom quando é novo”.
(...)
Os alcaides que o acompanhavam certamente estavam encarregados de “vários
afazeres administrativos”... Possuidores de “vasta experiência e sabedoria”, eles
não deixaram de observar que o Governador não apreciava as ironias, sobretudo
as que os mais pobres ousavam fazer (é claro que isso foi um recado não velado
ao “homem do povo”)... E concluíram: A
ironia é “virtude destrutiva” e o Governador achava preferível que se
cultivassem os “vícios que constroem”.
É claro... O Governador não
queria nenhum tipo de mobilização no meio do povo... Ele mesmo garantiu que era
o “rei da imobilidade”.
(...)
Também os bêbados ouviram aquele festival de besteiras...
À porta da taberna disseram que o Governador tinha razão. Mas eles lamentavam por
só enxergarem “movimentação” em tudo... Também eles queriam a imobilidade, mas o
seu estado de embriaguez impedia a quietude. Gritaram que tudo devia ser
suprimido... “Menos o vinho e a loucura”.
(...)
O coro cantou a felicidade do “nada ocorrer”... Tudo está em ordem! As
estações não se atropelarão... Os astros seguem seu prudente curso... Aqueles
de cabeleira em chamas e de perturbador uivar, que provocam conturbações
celestes, estão condenados... O verão segue em sua plenitude, então o que
importa mais? Todos devem se orgulhar por se sentirem felizes.
(...)
Os alcaides procuraram granjear a simpatia de todos ao
Governador... Disseram que também ele possui hábitos e não gosta das “cabeleiras
loucas”... É por isso que todo o seu território “é bem penteado”.
O coro voltou a cantar sua mensagem... As vozes manifestaram que todos
deviam permanecer prudentes... Todos têm certeza de que nada ocorrerá; nada
mudará... Que vantagem haveria em se avistar qualquer tipo de fenômeno?
(...)
Ninguém precisaria responder. Mesmo assim os bêbados que estavam juntos
ao Nada disseram que o movimento deveria mesmo ser suprimido... Ninguém deveria
sequer se mover... Para quê? E que bom se as estações também se tornassem
imóveis! As horas passariam naquele país sem história e o “calor permanente” continuaria
a “nos levar a beber”.
(...)
Mas o que ninguém esperava era o retorno do zumbido que anunciava o
cometa... O som agudo tornou-se quase que ensurdecedor...
Duas fortes pancadas são ouvidas ao fundo. Todos em
cena adotam fisionomia de espanto... Do tablado, onde os artistas encenavam o
seu “ato sacro do imortal Pedro de La Lariba: Os Espíritos”, um dos comediantes desceu cambaleante em direção à
aglomeração... O jovem caiu e todos silenciaram e se tornaram imóveis... Mas
logo disparam e cercam o tipo.
Diogo se apressou na
direção do ocorrido... Aos poucos o local onde o sinistro ocorreu fica à vista
de todos os que assistem a Estado de
Sítio. Dois médicos analisam o rapaz e discutem... Um dos rapazes da trupe
quis saber o que estava acontecendo e insistiu para que os doutores
esclarecessem a todos.
Este tipo sacolejou um dos médicos
no afã de obter a explicação... Foi a custo que o de avental branco soltou o
diagnóstico: “A Peste”.
(...)
As pessoas se
ajoelharam... Elas repetiam a palavra (peste)... No início sussurravam... Aos
poucos aumentavam a intensidade até que passaram a gritar.
De repente ergueram-se e principiaram a circular cada vez mais rápido,
inclusive em torno do Governador... Perambulavam e gritavam o nome da epidemia.
(...)
Uma potente voz fez com que
todos se imobilizassem novamente... Era o velho padre que ordenava a todos que
se dirigissem para a igreja... Disse que o castigo havia chegado... O Céu o
enviara, e isso sempre ocorria “às cidades corrompidas”... A morte seria a
sentença para os pecadores... As bocas mentirosas não teriam socorro, pois
seriam esmagadas... Só o Deus da Justiça poderia perdoá-los... Então ninguém
podia vacilar nem mais um minuto.
O cura ordenou que todos
entrassem na igreja. Muitos, de fato, atenderam à recomendação... Outros,
porém, permaneceram na praça a olhar para um e outro lado...
O “sino dos mortos” começou a badalar.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/09/estado-de-sitio-de-albert-camus_18.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto