Cinco horas da manhã.
Todos voltaram suas atenções ao cometa que novamente podia ser avistado...
Nada se debruçou sobre um marco e iniciou sua zombaria... Disse que ele é que era “a luz daquela cidade”; sua sabedoria e cultura o faziam um tipo diferenciado, no entanto (garantiu) preferia permanecer bêbado “por desdém de todas as coisas e por nojo das honrarias”... E por que era ridicularizado pelos demais? Ele mesmo tinha a resposta: porque assumia a sua liberdade de a tudo desprezar.
Depois, referindo-se ao cometa como “fogo de artifício”, falou que todos ali estavam “nisso” e que cada vez mais estavam envolvidos “nisso”.
O bêbado sentenciava que o cometa não trazia nada de novo... O astro apenas “despertava as pessoas”.
Mas então qual era a situação a que o bêbado se referia ao dizer que todos ali estavam “cada vez mais envolvidos nisso”? As pessoas à sua volta não perguntavam, mas queriam saber... Ele prosseguiu dizendo que os tipos de mais juízo, os “homens de razão”, deviam adivinhar.
(...)
Afinal, qual era a mensagem de Nada?
Que “a vida vale a morte”; que ”o homem é a madeira da qual se fazem as
fogueiras”... E também que o cometa antecipava uma situação de muitos
aborrecimentos.
Nada apresentou suas conclusões e vaticinou que era apenas uma questão
de tempo... As pessoas imaginavam levar sua vida em normalidade, mas quando
menos esperassem o pior ocorreria... Confusamente, disse que “os homens não
estão em ordem, estão em fila” (em breve saberemos o significado dessas
palavras).
Nada queria dizer que ele mesmo estava em paz com a sua consciência...
Advertiu os conterrâneos... Então cabia a cada um se preparar para o pior...
Todavia acrescentou que não deviam se preocupar tanto, pois “lá em cima” há
quem se ocupa de todos...
Os resultados não seriam “nada cômodos”... Todos o deviam saber.
(...)
O juiz Casado apareceu e
censurou o falastrão Nada...
O magistrado disse que já
fazia muito tempo que aquele embriagado vivia “tomando liberdades com o Céu”...
Nada reclamou das palavras do juiz e se defendeu garantindo que em nenhum
momento fizera referência ao Céu... Ele não era tão desajustado a ponto de se
colocar como “vítima do Céu”... Suas leituras o orientavam a (antes) ser “cúmplice
do Céu”. Aliás, prosseguiu o maluco, achava que as pessoas já deviam “ter
percebido que Deus” (profundo conhecedor de música) “não passa de um menino de
coro”.
O juiz não se
conformava com o modo de proceder do vagabundo. Então vociferou que era
exatamente por causa de libertinos como Nada que as “desconfianças celestes”
recaíam sobre todos. A passagem do cometa era um alerta. Os que tinham o
coração corrompido deviam se arrepender... Efeitos piores poderiam ser
despejados sobre todo o povo.
Depois desse sermão, o juiz Casado orientou a todos que se ajoelhassem.
As pessoas procederam
conforme foram orientadas... Nada não se movimentou, e mais uma vez foi
advertido pelo juiz... O tipo disse que não podia se ajoelhar porque tinha o “joelho
duro”... Casado perguntou-lhe se não acreditava em nada; se não era temente aos
Céus.
Nada respondeu que não acreditava em nada deste
mundo... Apenas no vinho... Também não acreditava em nada do Céu.
O juiz pediu a Deus que perdoasse aquele miserável... E também que
poupasse a vida do povo e a cidade.
Foi como se estivesse falando a um fantasma... Nada
puxou conversa com Diogo e sugeriu que este lhe oferecesse “uma garrafa em
honra ao cometa”. O moço letrado respondeu que havia ficado noivo da filha do
juiz, e que as ofensas dirigidas ao senhor Casado atingiam-no igualmente.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/09/estado-de-sitio-de-albert-camus-o_95.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto