quarta-feira, 7 de novembro de 2012

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – “método” Menocchio de leitura dos textos apócrifos

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_26.html antes de ler esta postagem:

Já foi mencionado que o Fioretto della Bibbia foi o único livro (entre os que constam da lista elaborada a partir das citações do próprio Menocchio) que o moleiro comprou para ler... Era o seu “livro de cabeceira” e por ele tinha interesses específicos... Os demais livros não eram exatamente produto de sua “escolha consciente”... Entre eles há temas relacionados à piedade, vida de santos, de viagens, crônicas, contos, almanaques... A leitura (e também a escrita) fazia de Menocchio era um tipo diferenciado. Para termos uma ideia, Leonardo da Vinci também possuiu edição de Foresti e do Mandeville em sua biblioteca; Historia del Giudicio foi livro de Ulisse Aldovandi, naturalista que também enfrentou processo inquisitorial...
A relação de livros apresentada não dá conta de todas as publicações a que certamente Menocchio teve acesso e conheceu... A quantidade de livros, temas e conteúdos devem ter sido muito maiores. A lista apresentada em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_26.html enumera apenas os citados em processo. Mais da metade (seis entre onze) tem temática religiosa cuja citação justificava suas ideias...
Ele próprio garantia que, gozando de perfeita saúde mental, elaborava seus juízos a partir de suas convivências e leituras... Vimos que a tentativa de classificá-lo como membro de algum grupo é tarefa complicada... Não pode ser entendido como “agitador luterano” ou anabatista...
Ginzburg analisa as passagens dos livros citadas e as conclusões que o acusado tirava delas... Avaliou que os textos sofriam uma “filtragem" pela leitura que fazia... Menocchio enfatizava algumas passagens e ocultava outras... A constatação é a de que ele formulava conceitos que reforçavam a teoria que tinha acerca das coisas da religião... Pode-se dizer que deturpava os textos, além de ignorar outras possíveis interpretações...
Na sequência temos alguns exemplos:
Sobre sua afirmação de que Cristo havia sido um homem comum e nascido de São José, o moleiro explica que Maria só era “chamada de virgem porque estivera no templo das virgens”. Confirmava que essa informação obtivera no Lucidario della Madonna (com grande probabilidade de ser o Rosario della gloriosa vergine Maria, de Alberto da Castello)... Menocchio destacou a passagem em que São Joaquim e Santa Ana deixaram a pequena Maria no templo, oferecida a Deus, para se devotar à contemplação... O trecho diz ainda que Maria “era visitada pelos santos anjos, sendo sua rainha e imperatriz sempre em oração”... Essa última parte era simplesmente ignorada pelo acusado, que reforçava a ideia de que Maria era apenas uma virgem entre tantas outras oferecidas a Deus no templo. Ginzburg destaca que talvez isso se devesse ao convívio de Menocchio com os afrescos da igreja de San Rocco de Montereale (em cujas cenas – pintadas por Calderari em 1556 - podem-se contemplar Maria, José e outros pretendentes), certamente observadas por ele muitas vezes. É possível que aquelas imagens tenham contribuído para a ideia que fazia da mãe de Jesus ter sido uma mulher comum como as demais virgens do templo.
Durante o interrogatório de 28 de abril de 1584, ele declarou que Maria não seria mais importante que a imperatriz que participa de governo dos povos... Ele confirmava uma afirmação que fizera a uma das testemunhas tempos atrás... Às autoridades procurou justificar dizendo que “no outro mundo” Maria, Nossa Senhora, é mais importante... Citou uma passagem que, em sua opinião, seria do Rosario dela gloriosa..., Ginszburg corrige afirmando que na verdade trata-se de trecho de Legendario delle vite de tutti li santi, de Jacopo da Varagine... Lê-se ali (no capítulo De l’assumptione de La beata vergine Maria, “reelaboração de certo livrinho apócrifo consagrado ao beato João Evangelista”) que anjos e apóstolos seguiam em procissão cantando as glórias e maravilhas da vida de Maria, que iam sepultar... Dessa forma despertaram toda a gente, inclusive os judeus inimigos dos cristãos, que decidiram aproveitar a ocasião para matar os discípulos e queimar o corpo da mãe de Jesus... O príncipe dos sacerdotes desdenhou daqueles que participavam do cortejo e colocou as mãos sobre o leito onde jazia Maria para derrubá-la. Porém, nesse mesmo instante, as mãos dele ficaram grudadas e secaram de tal forma que provocaram-lhe intensa dor... Os demais que o seguiam foram cegados pelos anjos. O que sofria o insuportável suplício implorou a São Pedro que intercedesse por ele junto a Deus... Pedro teria respondido que não podiam se ocupar dele porque se dedicavam às exéquias de Nossa Senhora, porém afirmou que o outro poderia reverter a situação em que se encontrava se acreditasse sinceramente que “Jesus Cristo é o verdadeiro filho de Deus e que Maria é sua santíssima mãe”... O príncipe dos sacerdotes proferiu essas palavras e assim suas mãos foram libertadas do caixão... Mas elas permaneciam secas... Só voltaram ao estado normal depois que ele, ainda orientado por Pedro, beijou o caixão e disse crer “em Deus Jesus Cristo, que foi carregado no ventre por ela e continuou virgem depois do parto”.
Para Menocchio, a conversão do chefe dos sacerdotes, suas palavras e providencial milagre não têm importância e não influenciam suas interpretações. Para ele, o que conta é a afronta, a “desonra” feita à Maria durante o enterro e sua condição miserável na ocasião. Então, “desmontando a narrativa de Varagine”, o moleiro colocava em descrédito a santidade e virgindade de Maria.
Menocchio havia afirmado não crer que Maria houvesse gerado Jesus a partir da concepção pelo Espírito Santo. Foi do Fioretto della Bibbia que ele extraiu essas ideias que eram reforçadas por trechos (sobretudo do capítulo CLXVI, Como Jesus foi mandado para a escola) em que São José chama Jesus de “filhinho”... No citado capítulo do Fioretto, Jesus amaldiçoa o professor que o havia repreendido fisicamente, ao que São José desperta a sua atenção chamando-o de “meu filho” e pede que se controle porque “aquela gente” já demonstrava muito ódio em relação a eles. Ginzburg destaca que Menocchio se ateve a essas palavras sem levar em consideração às de trecho anterior (Como Jesus, brincando com outras crianças, ressuscitou um menino que havia morrido) em que Maria responde a uma mulher que Jesus era filho dela, e que “seu pai é o Deus único”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_13.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas