Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_26.html
antes de ler esta postagem:
Já foi mencionado que o Fioretto della Bibbia foi o único livro (entre os que constam da
lista elaborada a partir das citações do próprio Menocchio) que o moleiro
comprou para ler... Era o seu “livro de cabeceira” e por ele tinha interesses
específicos... Os demais livros não eram exatamente produto de sua “escolha
consciente”... Entre eles há temas relacionados à piedade, vida de santos, de
viagens, crônicas, contos, almanaques... A leitura (e também a escrita) fazia
de Menocchio era um tipo diferenciado. Para termos uma ideia, Leonardo da Vinci
também possuiu edição de Foresti e do
Mandeville em sua biblioteca; Historia del Giudicio foi livro de
Ulisse Aldovandi, naturalista que também enfrentou processo inquisitorial...
A relação de livros apresentada
não dá conta de todas as publicações a que certamente Menocchio teve acesso e conheceu...
A quantidade de livros, temas e conteúdos devem ter sido muito maiores. A lista
apresentada em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_26.html enumera apenas os citados em processo.
Mais da metade (seis entre onze) tem temática religiosa cuja citação
justificava suas ideias...
Ele próprio garantia que,
gozando de perfeita saúde mental, elaborava seus juízos a partir de suas convivências e leituras... Vimos que a tentativa de classificá-lo como membro de algum grupo
é tarefa complicada... Não pode ser entendido como “agitador luterano” ou
anabatista...
Ginzburg analisa as
passagens dos livros citadas e as conclusões que o acusado tirava delas...
Avaliou que os textos sofriam uma “filtragem" pela leitura que fazia... Menocchio enfatizava algumas passagens e ocultava outras... A constatação é a de que ele
formulava conceitos que reforçavam a teoria que tinha acerca das coisas da
religião... Pode-se dizer que deturpava os textos, além de ignorar outras
possíveis interpretações...
Na sequência temos alguns exemplos:
Sobre sua afirmação de que
Cristo havia sido um homem comum e nascido de São José, o moleiro explica que
Maria só era “chamada de virgem porque estivera no templo das virgens”.
Confirmava que essa informação obtivera no Lucidario
della Madonna (com grande probabilidade de ser o Rosario della gloriosa vergine Maria, de Alberto da Castello)...
Menocchio destacou a passagem em que São Joaquim e Santa Ana deixaram a pequena
Maria no templo, oferecida a Deus, para se devotar à contemplação... O trecho
diz ainda que Maria “era visitada pelos santos anjos, sendo sua rainha e
imperatriz sempre em oração”... Essa última parte era simplesmente ignorada
pelo acusado, que reforçava a ideia de que Maria era apenas uma virgem entre
tantas outras oferecidas a Deus no templo. Ginzburg destaca que talvez isso se
devesse ao convívio de Menocchio com os afrescos da igreja de San Rocco de
Montereale (em cujas cenas – pintadas por Calderari em 1556 - podem-se
contemplar Maria, José e outros pretendentes), certamente observadas por ele
muitas vezes. É possível que aquelas imagens tenham contribuído para a ideia
que fazia da mãe de Jesus ter sido uma mulher comum como as demais virgens do
templo.
Durante o
interrogatório de 28 de abril de 1584, ele declarou que Maria não seria mais
importante que a imperatriz que participa de governo dos povos... Ele
confirmava uma afirmação que fizera a uma das testemunhas tempos atrás... Às
autoridades procurou justificar dizendo que “no outro mundo” Maria, Nossa
Senhora, é mais importante... Citou uma passagem que, em sua opinião, seria do Rosario dela gloriosa..., Ginszburg
corrige afirmando que na verdade trata-se de trecho de Legendario delle vite de tutti li santi, de Jacopo da Varagine...
Lê-se ali (no capítulo De l’assumptione
de La beata vergine Maria, “reelaboração de certo livrinho apócrifo
consagrado ao beato João Evangelista”) que anjos e apóstolos seguiam em
procissão cantando as glórias e maravilhas da vida de Maria, que iam sepultar...
Dessa forma despertaram toda a gente, inclusive os judeus inimigos dos
cristãos, que decidiram aproveitar a ocasião para matar os discípulos e queimar
o corpo da mãe de Jesus... O príncipe dos
sacerdotes desdenhou daqueles que participavam do cortejo e colocou as mãos
sobre o leito onde jazia Maria para derrubá-la. Porém, nesse mesmo instante, as
mãos dele ficaram grudadas e secaram de tal forma que provocaram-lhe intensa
dor... Os demais que o seguiam foram cegados pelos anjos. O que sofria o
insuportável suplício implorou a São Pedro que intercedesse por ele junto a
Deus... Pedro teria respondido que não podiam se ocupar dele porque se
dedicavam às exéquias de Nossa Senhora, porém afirmou que o outro poderia
reverter a situação em que se encontrava se acreditasse sinceramente que “Jesus
Cristo é o verdadeiro filho de Deus e que Maria é sua santíssima mãe”...
O príncipe dos sacerdotes
proferiu essas palavras e assim suas mãos foram libertadas do caixão... Mas
elas permaneciam secas... Só voltaram ao estado normal depois que ele, ainda
orientado por Pedro, beijou o caixão e disse crer “em Deus Jesus Cristo, que
foi carregado no ventre por ela e continuou virgem depois do parto”.
Para Menocchio, a conversão
do chefe dos sacerdotes, suas palavras e providencial milagre não têm
importância e não influenciam suas interpretações. Para ele, o que conta é a
afronta, a “desonra” feita à Maria durante o enterro e sua condição miserável
na ocasião. Então, “desmontando a narrativa de Varagine”, o moleiro colocava em
descrédito a santidade e virgindade de Maria.
Menocchio havia afirmado não crer que Maria houvesse gerado Jesus a
partir da concepção pelo Espírito Santo. Foi do Fioretto della Bibbia que ele extraiu essas ideias que eram
reforçadas por trechos (sobretudo do capítulo CLXVI, Como Jesus foi mandado para a escola) em que São José chama Jesus
de “filhinho”... No citado capítulo do Fioretto,
Jesus amaldiçoa o professor que o havia repreendido fisicamente, ao que São
José desperta a sua atenção chamando-o de “meu filho” e pede que se
controle porque “aquela gente” já demonstrava muito ódio em relação a eles. Ginzburg destaca que
Menocchio se ateve a essas palavras sem levar em consideração às de trecho
anterior (Como Jesus, brincando com
outras crianças, ressuscitou um menino que havia morrido) em que Maria
responde a uma mulher que Jesus era filho dela, e que “seu pai é o Deus único”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_13.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto