quarta-feira, 21 de novembro de 2012

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – leituras de Menocchio em Cavallier Zuanne de Mandavilla” (As viagens de sir John Mandeville); pigmeus e seus costumes; ilha de Dundina e o canibalismo; “uns creem de um modo e outros de outro”; sua síntese sobre o livro

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_14.html antes de ler esta postagem:

Não é de se admirar que um tipo como Menocchio tenha ficado tão impressionado (e encantado mesmo) com as narrativas de Mandeville. A descrição da pequena ilha de Chana, “próxima” à Índia, chamava à atenção para a variedade de crenças e costumes religiosos do lugar... Tudo muito diferente do que ele conhecia em seu pequeno universo limitado a Montereale, Pordenone...
Lugares fantásticos como a Índia, Catai (China) e ilhas onde viviam canibais e povos muito diferenciados como os pigmeus, despertavam a imaginação de quem lia o texto... Sobre os pigmeus, Il Cavallier Zuanne de Mandavilla destacava sua baixa estatura (em torno de três palmos) e que, por isso mesmo, eram belos e graciosos. Curiosa era a informação de que viviam por apenas seis ou sete anos (quando já eram considerados bem velhos)... Casavam-se com menos de um ano e aos três já procriavam... A terra não era por eles trabalhada, pois para a lavoura exploravam tipos de “estatura normal”, “gente grande” que desprezavam. Mandeville destaca que, muito provavelmente, os europeus também desprezariam aos pigmeus... A narração explica que aquele pequeno povo era especialista no cultivo da seda e algodão, sendo excelentes tecelões.
Conhecer essas narrativas levavam o moleiro a refletir sobre suas crenças e convicções... “Tantas raças, e (...) tão diversas leis”, “muitas ilhas, cada uma vivendo à sua maneira”, “(...) uns acreditando de um modo, outros de outro”... Essas considerações foram repetidas em várias ocasiões por Menocchio durante o processo. Ginzburg destaca que, na mesma época, Michel de Montaigne também havia se encantado com os relatórios sobre os índios do continente americano. Evidentemente Menocchio não era nenhum “iluminista”... Suas limitações levavam-no a se apropriar daqueles textos de modo a idealizá-los e a por em dúvida as estruturas sociais, políticas e religiosas de seu meio.
O capítulo CXLVIII das “viagens de Mandeville” (Da ilha de Dundina onde se comem uns aos outros quando não podem escapar, e do poder do seu rei, o qual é senhor de 54 outras ilhas, e dos muitos tipos de homens que vivem nessas ilhas) despertava o interesse, a curiosidade e o encantamento de Menocchio. Entre as informações que mais lhe chamavam a atenção estavam relacionadas ao modo de lidarem com as doenças de entes e amigos queridos. Um “padre da religião” era procurado para que um ídolo enfeitiçado fosse consultado... O texto destaca que alguma entidade maligna revelava se o doente escaparia ou não da morte e, quando era o caso, ensinava o modo de curar o enfermo. Se a revelação sobre a doença indicasse que a morte era certa para o doente, o padre acompanhava os que o atendiam para asfixiá-lo com um pano. Depois de morto, seu corpo era cortado em pedaços e todos os amigos e parentes apareciam para rezar e se alimentar do corpo sem vida e enterrar os seus ossos... Tudo isso ocorria em um clima de muita festividade, ao som de instrumentos musicais e cantorias. Parentes e amigos do morto que não participassem dessa cerimônia eram desprezados por isso, e deixavam de ter a consideração dos familiares do defunto... Alimentavam-se da carne para livrar o morto de seus sofrimentos. Quando a carne era magra, os parentes e amigos concluíam que cometeram um erro (um pecado) ao permitirem que aquela pessoa definhasse e “sofresse tanto sem razão”. Quando a carne era gorda ficavam satisfeitos porque isso era um sinal de que o morto não havia sofrido e logo iria para o Paraíso.
Os registros do interrogatório de 22 de fevereiro de 1584 dão conta que Il Cavallier Zuanne de Mandavilla chegou até Menocchio emprestado pelo capelão Andrea da Maren... Em resposta às autoridades, o moleiro sintetizou o texto dizendo tratar-se de uma “viagem para Jerusalém e de algumas divergências entre gregos e o papa; (...) do grande Khan, da cidade de Babilônia, do Preste João, de Jerusalém e de muitas ilhas onde uns vivem de um modo e outros de outro”. Ressaltou que o cavaleiro conversou sobre os padres, papas e demais religiosos com o sultão... Este teria esclarecido que Jerusalém era dos cristãos, mas devido ao mau governo destes e do papa, “Deus a retirou deles”...
Mesmo sendo interrompido algumas vezes, o moleiro citou a parte sobre o canibalismo e contou que “procuravam o padre quando necessitavam saber como curar uma doença ou se ela traria a morte; se esse fosse o caso, o padre sufocava o adoentado, que morria e tinha o seu corpo retalhado para que fosse comido pelo religioso, parentes e amigos do morto; se a carne tinha um bom sabor, o morto não tinha pecados e estava salvo espiritualmente; se a carne era ruim, significava que o morto havia sido um pecador e que seus amigos e parentes haviam feito mal em permitir que ele vivesse por tanto tempo”... O moleiro concluiu daí que, após a morte, a alma também morria... “Uns creem de um modo e outros de outro”.
Fica claro que Menocchio, também nesse caso, fizera uma interpretação em que frases e palavras do texto sofreram uma adaptação para que se encaixassem em seus conceitos... Assim, a “carne magra do morto” era avaliada como “ruim de ser comida”; “a carne gorda”, por outro lado, seria “boa de ser comida”... Daí resultando que “a carne boa de ser comida” sinalizava que o morto não tinha pecados, e “a carne ruim de ser comida” era um sinal de que o morto estava cheio de pecados... Para Menocchio, “Paraíso e inferno” são desta terra, e a alma é mortal”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_28.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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