Não é de se admirar que um tipo como Menocchio tenha ficado tão impressionado (e encantado mesmo) com as narrativas de Mandeville. A descrição da pequena ilha de Chana, “próxima” à Índia, chamava à atenção para a variedade de crenças e costumes religiosos do lugar... Tudo muito diferente do que ele conhecia em seu pequeno universo limitado a Montereale, Pordenone...
Lugares fantásticos como a Índia, Catai (China) e ilhas onde viviam canibais e povos muito diferenciados como os pigmeus, despertavam a imaginação de quem lia o texto... Sobre os pigmeus, Il Cavallier Zuanne de Mandavilla destacava sua baixa estatura (em torno de três palmos) e que, por isso mesmo, eram belos e graciosos. Curiosa era a informação de que viviam por apenas seis ou sete anos (quando já eram considerados bem velhos)... Casavam-se com menos de um ano e aos três já procriavam... A terra não era por eles trabalhada, pois para a lavoura exploravam tipos de “estatura normal”, “gente grande” que desprezavam. Mandeville destaca que, muito provavelmente, os europeus também desprezariam aos pigmeus... A narração explica que aquele pequeno povo era especialista no cultivo da seda e algodão, sendo excelentes tecelões.
Conhecer essas narrativas levavam o moleiro a refletir sobre suas crenças e convicções... “Tantas raças, e (...) tão diversas leis”, “muitas ilhas, cada uma vivendo à sua maneira”, “(...) uns acreditando de um modo, outros de outro”... Essas considerações foram repetidas em várias ocasiões por Menocchio durante o processo. Ginzburg destaca que, na mesma época, Michel de Montaigne também havia se encantado com os relatórios sobre os índios do continente americano. Evidentemente Menocchio não era nenhum “iluminista”... Suas limitações levavam-no a se apropriar daqueles textos de modo a idealizá-los e a por em dúvida as estruturas sociais, políticas e religiosas de seu meio.

Os registros do interrogatório de 22 de fevereiro de 1584 dão conta que Il Cavallier Zuanne de Mandavilla chegou até Menocchio emprestado pelo capelão Andrea da Maren... Em resposta às autoridades, o moleiro sintetizou o texto dizendo tratar-se de uma “viagem para Jerusalém e de algumas divergências entre gregos e o papa; (...) do grande Khan, da cidade de Babilônia, do Preste João, de Jerusalém e de muitas ilhas onde uns vivem de um modo e outros de outro”. Ressaltou que o cavaleiro conversou sobre os padres, papas e demais religiosos com o sultão... Este teria esclarecido que Jerusalém era dos cristãos, mas devido ao mau governo destes e do papa, “Deus a retirou deles”...
Mesmo sendo interrompido algumas vezes, o moleiro citou a parte sobre o canibalismo e contou que “procuravam o padre quando necessitavam saber como curar uma doença ou se ela traria a morte; se esse fosse o caso, o padre sufocava o adoentado, que morria e tinha o seu corpo retalhado para que fosse comido pelo religioso, parentes e amigos do morto; se a carne tinha um bom sabor, o morto não tinha pecados e estava salvo espiritualmente; se a carne era ruim, significava que o morto havia sido um pecador e que seus amigos e parentes haviam feito mal em permitir que ele vivesse por tanto tempo”... O moleiro concluiu daí que, após a morte, a alma também morria... “Uns creem de um modo e outros de outro”.
Fica claro que Menocchio, também nesse caso, fizera uma interpretação em que frases e palavras do texto sofreram uma adaptação para que se encaixassem em seus conceitos... Assim, a “carne magra do morto” era avaliada como “ruim de ser comida”; “a carne gorda”, por outro lado, seria “boa de ser comida”... Daí resultando que “a carne boa de ser comida” sinalizava que o morto não tinha pecados, e “a carne ruim de ser comida” era um sinal de que o morto estava cheio de pecados... Para Menocchio, “Paraíso e inferno” são desta terra, e a alma é mortal”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_28.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto