A missão retornou à Base... Após três dias chegaram oito novos companheiros. Eram todos bem jovens e haviam passado por breve treinamento depois de atravessarem o rio Congo desde Kinshasa até Brazzaville. Obviamente fizeram a jornada clandestinamente.
(...)
Logo que os viu, o
Comandante disparou que era pouco. Além do mais, os rapazes contavam entre 17 e
20 anos e, em vez de os mandarem (os dirigentes) para a mata, deviam enviá-los
para os estudos. Assim a coisa ia mal... Completou seu protesto dizendo que a
Base precisava de guerrilheiros de verdade, e não de “miúdos” que só serviam
para “fazer a guarda”.
Como que para reanimá-lo, o Comissário Político disse que os rapazes
podiam se formar no exercício da guerrilha. Mas Sem Medo insistiu que
certamente teriam problemas. Em sua opinião, não bastava aumentar o efetivo de
qualquer modo. Precisavam de homens mais qualificados! Na sequência, garantiu
que havia alguns bem mais experientes que viviam no exterior. Mas estes não
eram encaminhados para a guerrilha porque eram parentes de “dirigentes
graúdos”... Apenas os que não tinham “primos mais influentes” estavam na
guerrilha.
Mundo
Novo estava atento à conversa e piscou para o Comissário Político... Depois
disse ao Comandante que o menor dentre os rapazes só podia ser da família do
camarada André, o responsável em Dolisie. O menino era mesmo muito parecido!
Sem Medo afirmou que
o outro estava com a razão. Mas acrescentou que aquele tipinho estava mais para
“primo em desgraça”... E tudo porque o seu pai havia brigado feio com o dirigente
André e lhe quebrado a cara nos tempos em que militavam na UPA (União dos Povos
de Angola), por volta de 1963, por causa de uma discussão sobre o sumiço de uns
medicamentos.
E
como é que o Comandante podia saber de tudo aquilo? Por ser kikongo como aqueles
tipos, estava bem informado... No final das contas, ele “pertencia à família”.
(...)
Essa conversa toda se
deu na “Casa do Comando”. Ali sempre ocorriam reuniões à tarde, antes de o
rádio transmitir o programa do MPLA.
O jovem franzino
havia se colocado a um canto, pois se sentia intimidado pela forte
personalidade de Sem Medo... E como não dominava o português pronunciava-se em
kikongo ou em francês. Evidentemente ouvira falar das muitas façanhas do
Comandante, seu distante parente. Aquele primeiro encontro o enchia de orgulho
e de temor.
A presença do
Comandante (sua voz firme, a rigidez de seu tronco, o olhar aguçado, barba
espeça e cabelos descuidados) era muito forte e intimidadora. De repente ele se
voltou para o miúdo querendo saber qual era o seu nome de guerra.
O rapaz respondeu que
ainda não possuía. Então Sem Medo virou-se para os presentes e perguntou-lhes o
que sugeriam.
Todos passaram a fitar o jovem, que baixou os olhos no mesmo instante.
Ekuikui foi o primeiro a arriscar um nome pronunciou “Onhoka”, que significa “a
cobra”.
Sem Medo censurou... Explicou que Ekuikui estava dando um nome em sua
língua, o umbundo. Acrescentou que o correto seria escolher um nome kikongo ou
em português, que era a língua que todos deviam entender mais ou menos.
Depois de observar em tom de gracejo que a
situação exemplificava um pouco do “imperialismo umbundo”, Sem Medo fez notar
que o rapaz em nada lembrava as características de uma cobra.
O fato é que a escolha
do nome de guerra de um novo guerrilheiro era sempre momento de várias
discussões. O novato era colocado no centro da sala e os veteranos o avaliavam
até chegarem a um nome adequado e de consenso. Podemos imaginá-los
descontraídos e fazendo gozações a partir das histórias que narravam sobre o
jovem.
Milagre propôs o nome “Avança”, mas Muatiânvua retrucou dizendo que o menino
tinha fisionomia “de quem recua”... Isso só retardou o processo porque as
gargalhadas custaram a cessar. Enfim chegaram à conclusão de que a timidez do
moço era a sua principal característica e todos concordaram que seu nome de
guerra podia ser “Vewê, o cágado”.
Sem
Medo deu a sua aprovação e foi logo chamando o miúdo pela nova alcunha. Depois
esclareceu que esperava que ele não desse trabalho ao grupo e, como que a fazer
novo gracejo a partir de uma humilhação, emendou que o Comissário tinha mais o
que fazer em vez de lavar-lhe as fraudas.
(...)
O Comissário Político
aproximou-se de Sem Medo e observou-lhe que não havia necessidade de ser tão
duro com Vewê...
O Comandante explicou
que aquilo devia servir para o moço entender que não teria privilégios no grupo
mesmo sabendo que era um seu parente... Todavia deixou claro ao Comissário que
não se faria de todo mau com o rapaz.
Depois
os outros sete recém-chegados também foram “batizados”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/01/mayombe-de-pepetela-so-ha-provisao-para.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto