segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – oito jovens guerrilheiros ingressam na Base; protestos de Sem Medo sobre as iniciativas dos dirigentes; acanhado parente kikongo entre os recém-chegados; a escolha do nome de guerra; Vewê

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/01/mayombe-de-pepetela-inicio-do-capitulo.html antes de ler esta postagem:

A missão retornou à Base... Após três dias chegaram oito novos companheiros. Eram todos bem jovens e haviam passado por breve treinamento depois de atravessarem o rio Congo desde Kinshasa até Brazzaville. Obviamente fizeram a jornada clandestinamente.
(...)
Logo que os viu, o Comandante disparou que era pouco. Além do mais, os rapazes contavam entre 17 e 20 anos e, em vez de os mandarem (os dirigentes) para a mata, deviam enviá-los para os estudos. Assim a coisa ia mal... Completou seu protesto dizendo que a Base precisava de guerrilheiros de verdade, e não de “miúdos” que só serviam para “fazer a guarda”.
Como que para reanimá-lo, o Comissário Político disse que os rapazes podiam se formar no exercício da guerrilha. Mas Sem Medo insistiu que certamente teriam problemas. Em sua opinião, não bastava aumentar o efetivo de qualquer modo. Precisavam de homens mais qualificados! Na sequência, garantiu que havia alguns bem mais experientes que viviam no exterior. Mas estes não eram encaminhados para a guerrilha porque eram parentes de “dirigentes graúdos”... Apenas os que não tinham “primos mais influentes” estavam na guerrilha.
Mundo Novo estava atento à conversa e piscou para o Comissário Político... Depois disse ao Comandante que o menor dentre os rapazes só podia ser da família do camarada André, o responsável em Dolisie. O menino era mesmo muito parecido!
Sem Medo afirmou que o outro estava com a razão. Mas acrescentou que aquele tipinho estava mais para “primo em desgraça”... E tudo porque o seu pai havia brigado feio com o dirigente André e lhe quebrado a cara nos tempos em que militavam na UPA (União dos Povos de Angola), por volta de 1963, por causa de uma discussão sobre o sumiço de uns medicamentos.
E como é que o Comandante podia saber de tudo aquilo? Por ser kikongo como aqueles tipos, estava bem informado... No final das contas, ele “pertencia à família”.
(...)
Essa conversa toda se deu na “Casa do Comando”. Ali sempre ocorriam reuniões à tarde, antes de o rádio transmitir o programa do MPLA.
O jovem franzino havia se colocado a um canto, pois se sentia intimidado pela forte personalidade de Sem Medo... E como não dominava o português pronunciava-se em kikongo ou em francês. Evidentemente ouvira falar das muitas façanhas do Comandante, seu distante parente. Aquele primeiro encontro o enchia de orgulho e de temor.
A presença do Comandante (sua voz firme, a rigidez de seu tronco, o olhar aguçado, barba espeça e cabelos descuidados) era muito forte e intimidadora. De repente ele se voltou para o miúdo querendo saber qual era o seu nome de guerra.
O rapaz respondeu que ainda não possuía. Então Sem Medo virou-se para os presentes e perguntou-lhes o que sugeriam.
Todos passaram a fitar o jovem, que baixou os olhos no mesmo instante. Ekuikui foi o primeiro a arriscar um nome pronunciou “Onhoka”, que significa “a cobra”.
Sem Medo censurou... Explicou que Ekuikui estava dando um nome em sua língua, o umbundo. Acrescentou que o correto seria escolher um nome kikongo ou em português, que era a língua que todos deviam entender mais ou menos.
Depois de observar em tom de gracejo que a situação exemplificava um pouco do “imperialismo umbundo”, Sem Medo fez notar que o rapaz em nada lembrava as características de uma cobra.
O fato é que a escolha do nome de guerra de um novo guerrilheiro era sempre momento de várias discussões. O novato era colocado no centro da sala e os veteranos o avaliavam até chegarem a um nome adequado e de consenso. Podemos imaginá-los descontraídos e fazendo gozações a partir das histórias que narravam sobre o jovem.
Milagre propôs o nome “Avança”, mas Muatiânvua retrucou dizendo que o menino tinha fisionomia “de quem recua”... Isso só retardou o processo porque as gargalhadas custaram a cessar. Enfim chegaram à conclusão de que a timidez do moço era a sua principal característica e todos concordaram que seu nome de guerra podia ser “Vewê, o cágado”.
Sem Medo deu a sua aprovação e foi logo chamando o miúdo pela nova alcunha. Depois esclareceu que esperava que ele não desse trabalho ao grupo e, como que a fazer novo gracejo a partir de uma humilhação, emendou que o Comissário tinha mais o que fazer em vez de lavar-lhe as fraudas.
(...)
O Comissário Político aproximou-se de Sem Medo e observou-lhe que não havia necessidade de ser tão duro com Vewê...
O Comandante explicou que aquilo devia servir para o moço entender que não teria privilégios no grupo mesmo sabendo que era um seu parente... Todavia deixou claro ao Comissário que não se faria de todo mau com o rapaz.
Depois os outros sete recém-chegados também foram “batizados”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas