O colega de Matemática disparou que, em “Quem Porfia Mata Caça”, havia um ator de papel secundário que se parecia muito com Tertuliano... Este, que já se encaminhava à sala de aulas dando por satisfatório o diálogo de até então, ouviu as palavras do outro e sentiu-se fulminado.
Então era isso... O de Matemática sabia que o de História era impressionantemente semelhante a um tipo, e que isso podia ser conferido por qualquer pessoa que viesse a alugar uma simples fita. Ele disse que, se o colega passasse a usar bigode, um e outro seriam tão iguais como “duas gotas d’água”.
O coração de Tertuliano acelerou... Buscou forças para não aparentar intranquilidade e respondeu que reparou mesmo a “coincidência assombrosa”... Disfarçando um sorriso, emendou que só faltava ao desconhecido tornar-se professor de História.
O de Matemática disse que, “puxando pela memória”, podia lembrar que Tertuliano também usou bigode por um tempo... Angustiado, respondeu que podia ser que o professor de História da época fosse o outro...
A resposta foi no mínimo arriscada, pois evidentemente não colocava ponto final ao assunto. Todavia o professor de Matemática quis consolá-lo ao dizer que reconhecia que o colega estava mesmo muito deprimido e que não devia se sentir tão afetado por uma “coincidência sem importância” como aquela...
Disse essas palavras colocando a mão no ombro de Tertuliano... Uma atitude paternalista que só fez aumentar ainda mais a insegurança do pobre rapaz, que tentou se esquivar afirmando que não estava afetado... Procurou justificar que sua indisposição devia-se ao fato de não ter passado bem à noite e por não dormir o suficiente.
O professor de Matemática arrematou que a noite mal dormida só podia ser resultado de sua angústia, e que o que o angustiava era o “sentir-se afetado”. No mesmo instante, ainda com a mão sobre o ombro de Tertuliano, percebeu que este se tornou tenso dos pés à cabeça... Notou que seu olhar tornou-se duro, então, com todo o cuidado, afastou o braço e se despediu dizendo que não almoçaria na escola.
Tertuliano nada disse... Baixou a cabeça e seguiu para a sala de aulas onde os alunos o aguardavam.
(...)
É Saramago quem diz que a reação de Tertuliano junto ao colega de
Matemática havia sido “uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente
conhecida como ira dos mansos”.
Na sequência, o autor trata dos temperamentos humanos tais como eram classicamente
divididos (melancólico, fleumático, sanguíneo, colérico)... Cada um deles
reconhecido a partir do tipo específico de reação dos organismos (cor da bílis,
o humor da fleuma, do sangue...). Pelo visto, a lágrima não mereceu
consideração dos entendidos em “posturas psíquicas” no passado... Talvez por
isso, “mansos” não ficaram sem lugar nas categorias estabelecidas.
Entretanto, tipos como
Tertuliano sempre existiram e cada vez mais são vistos em maior quantidade
espelhados pelas cidades...
O fato de o professor de
História não ter derramado lágrimas após as breves palavras trocadas com o
colega de Matemática não significa que, em seu interior, não estivesse a se
despedaçar. De fato, não raro, os mansos trazem consigo o lenço sempre necessário
ao socorro dos olhos lacrimejantes.
Atitudes em demasiado
protetoras, como pareceu ser a do colega de Matemática, podem provocar a reação
conhecida como “ira dos mansos”... O professor notou a mudança em Tertuliano...
De submisso passou a hostil... Talvez tenha se afastado dizendo que só se
encontrariam novamente mais tarde para não aumentar ainda mais o desconforto do
outro.
Saramago brinca ao registrar que antes de dormir
muitos oram a Deus para que sejam livrados “de todo mal, e em particular da ira
dos mansos”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-aula.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto