sábado, 20 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – da confusão de admitir que o ator lhe fosse totalmente estranho; optar pela razão e colocar fim à situação ou seguir a intuição; o Senso Comum dispõe-se a um reencontro; novo devaneio no começo do dia

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-no.html antes de ler esta postagem:

Tertuliano tinha de ouvir aquelas palavras...
Como não podia deixar de ser, Senso Comum prima pela simplicidade de raciocínio... Era evidente que, após troca de ideias num hipotético encontro entre os “dois idênticos”, encontros seriam marcados e muitas questões pessoais mantidas em segredo seriam reveladas... Tertuliano sabia bem que com um estranho devemos tomar todo cuidado para não nos abrirmos demais, mas ele parecia não crer que qualquer aproximação com o tipo pudesse resultar em grande confusão.
Ele mesmo disse que era difícil considerar estranho alguém que era o seu “retrato vivo”. Para o Senso Comum não havia necessidade de perder tempo com esse tipo de consideração... O rapaz devia tocar a vida de sempre sem querer mudar o fato de o outro ser um desconhecido... É dessa forma que devia permanecer.
Tertuliano teimou... Concordou que o outro era desconhecido, mas não o via como um estranho.
(...)
O Senso Comum garantiu que todos nós somos estranhos... Eles mesmos (Tertuliano e o próprio Senso Comum) eram estranhos um para o outro... Pouquíssimas vezes haviam se falado e ainda mais raras foram as ocasiões em que tiraram algum proveito.
Tertuliano admitiu que aquilo fosse verdade... Ele próprio se sentia culpado por não se falarem mais vezes. O Senso Comum quis tranquilizá-lo e expressou que a natureza de ambos os colocava em caminhos paralelos, e que a distância que os separava era muito grande... O fato de se falarem naquele momento devia-se à “emergência da situação”.
O rapaz entendeu o tom de seriedade dado pelo seu Senso Comum. Deu a entender que admitia as consequências e que “o que tiver de ser, será”... O Senso Comum explicou que a ideia da predestinação podia, muitas vezes, justificar o comodismo... Advertiu que no final das contas o que quer que ocorresse seria resultado das opções do próprio Tertuliano.
O moço respondeu que faria exatamente o que tinha de se fazer. Então o Senso Comum lembrou que há pessoas que se decidem por opções que levam em conta apenas a própria vontade, e depois saem a dizer que as decisões tomadas se baseavam “no que devia ser feito”.
Tertuliano apresentou argumentos que contestavam a ideia de que “as decisões baseadas na vontade são as mais simples”... Para ele, a “indecisão, a incerteza e a irresolução” eram simples... Garantiu que a experiência o levara a pensar dessa forma.
O Senso Comum admitiu que, pelo menos por enquanto, sua missão estava encerrada, pois estava certo que o professor faria o que bem entendesse. Despediu-se desejando que tudo ocorresse da melhor forma... Tertuliano mesmo disse que era provável que se reencontrariam noutra “situação de emergência”. A entidade foi se afastando e dizendo que esperava alcançá-lo a tempo.
(...)
Definitivamente o dia havia se iniciado...
Nenhuma luz artificial nas ruas... O trânsito já era dos intensos...
Para alguns, aquele era o primeiro dia de suas vidas... Para outros, era o último... Para a maioria, era apenas “mais um dia”.
Como seria esse novo dia na vida de Tertuliano Máximo Afonso?
Bem poderia ser “outro primeiro dia, um outro começo”.
(...)
Contemplou no espelho o próprio rosto cansado.
Tinha dormido bem pouco... E tudo porque não encontrara explicação para a medonha descoberta. Jamais na História da Humanidade “aconteceu existirem duas pessoas iguais no mesmo lugar e no mesmo tempo”!
Tertuliano barbeou-se e concluiu que seu aspecto era aceitável... Considerou mesmo que as pessoas de seu convívio não tinham motivos para censurar-lhe a aparência... Quem sabe não faria sucesso interpretando papel de galã num seriado da televisão?
O questionamento que Saramago colocou nos pensamentos de seu personagem levou-o (o autor brinca com essa ideia) à mesa de trabalho, onde pegou um “marcador preto” para, diante do espelho, imprimir acima de seu lábio superior um bigode que lhe permitisse fazer a vez do ator quando interpretou o empregado de recepção de hotel...
Espantou-se mais uma vez... No espelho viu refletida a imagem do outro. Quem era aquele desconhecido, “seu igual”, de quem sequer sabia o nome?
Por um tempo isso o levou a um estado de confusão.
Só depois de fechar os olhos e de lançar água ensaboada contra o espelho voltou a si... Reassumiu sua condição de professor de História do Ensino Secundário e de modesto proprietário daquele apartamento.
Para refazer-se de mais esse devaneio resolveu submeter-se à ducha fria.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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