Sem dúvida a conversa que teve com o colega de Matemática antes de iniciar as aulas o intrigara ainda mais.
Ao que tudo indica, seu horário de almoço havia sido de reflexões a respeito dos rumos que daria ao caso da duplicidade. Durante a reunião, enquanto o professor explanava suas considerações a respeito dos documentos que versavam sobre a atualização das práticas docentes, pensou que naquela mesma tarde daria inicio a uma investigação.
Ao deixar a reunião pedagógica, Tertuliano rumou para a locadora de vídeos...
(...)
Passou os olhos pelas estantes abarrotadas de vídeos.
Analisou mais detidamente uma e outra embalagem... Depois se aproximou do balcão,
onde o mesmo funcionário que preenchera sua ficha de locação no dia anterior o
atendeu.
Tertuliano anunciou que estava ali para comprar a fita que tinha
alugado... O tipo lembrava-se perfeitamente do cliente de nome diferenciado e
do título do filme. Solícito, sugeriu que devolvesse a fita e que levasse uma
nova... Esclareceu que, devido ao uso contínuo das que são colocadas para a
locação, sempre ocorre de imagem e som perderem um pouco da qualidade.
Tertuliano respondeu que não havia necessidade. Não
estava com a fita no momento e, além disso, para o fim a que se destinava, a
condição do produto era mais que satisfatória.
O funcionário estranhou que o cliente visse mais interesse numa cassete
do que a mera reprodução. Evidentemente não manifestou a curiosidade... Disse
que daria um desconto...
Tertuliano não prestava atenção ao que o rapaz dizia... Sabemos que seu
interesse pela fita nada tinha a ver com pechincha. Perguntou se a loja possuía
outros títulos da mesma produtora... O funcionário quis saber se ele procurava
outros filmes do mesmo realizador.
O professor confirmou que tinha interesse de conhecer mais materiais da
produtora... É claro que a observação era das mais estranhas. Por motivos óbvios,
o rapaz não quis saber mais detalhes... Apenas esclareceu que fazia tempo que
estava no ramo da locação de filmes e que o comum eram as pessoas aparecerem
solicitando certos títulos, gêneros, atores... Raramente vinham atrás de filmes
de diretores específicos...
Era a primeira vez que alguém mostrava interesse pela produtora.
Tertuliano não tinha interesse de ouvir mais a respeito do mercado de locações
de vídeos... Disse que talvez fizesse parte do grupo dos clientes mais raros.
(...)
O funcionário concordou. No
final das contas o que importava era a venda... O cliente devia sair satisfeito
da loja... Lembrou-se que tivera vontade de rir do primeiro nome do
professor... De posse da ficha de locação, tratou-o por Máximo Afonso... Assim
Tertuliano havia assinado...
O rapaz estava tão
concentrado em tratar bem ao excêntrico cliente que se esqueceu de sua demanda por
mais filmes da mesma produtora... Tertuliano perguntou-lhe novamente a respeito,
e dessa vez acrescentou os motivos de seu interesse. Disse que realizava “um
estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto
as explícitas como as implícitas e subliminares, em suma, os sinais ideológicos
que uma determinada empresa produtora de cinema, descontando o grau efetivo de
consciência com que o faça, vai, passo a passo, metro a metro, fotograma a fotograma,
difundindo entre os consumidores”.
(...)
O funcionário
arregalou os olhos... Espantou-se com a explicação do cliente sobre a necessidade
de conhecer outros filmes da produtora. De fato, ali estava um tipo raro, que
sabia expor razões fundamentadas e de modo apaixonado...
A eloquência a respeito de estudo ou ensaio era admirável... Mas o que
importava era a venda... E não é que o projeto do excêntrico cliente podia
resultar em boa féria?
Não dava para saber se
todos os filmes da produtora estavam disponibilizados em vídeo... Mas é claro
que o esforço de conseguir o que havia no mercado valeria a pena.
O rapaz deu a entender que se empenharia... Sugeriu
que seria interessante entrar em contato com a produtora para conhecer uma
lista dos filmes produzidos... Tertuliano esclareceu que aquilo não era
necessário, talvez nem precisasse de todos os filmes lançados... Gostaria de
conhecer os que a locadora disponibilizava.
As palavras do professor baixaram as expectativas do funcionário... Mas
foi com disposição que ele se pôs a percorrer o acervo...
Tertuliano gritou-lhe que, para começar,
bastavam cinco ou seis fitas.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-mais.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto