Tertuliano chegou à sala de aulas... Seu estado carrancudo era visível. Um dos jovens comentou com o que estava mais próximo que o professor “vinha com a mosca”.
A realidade é que o pior já havia passado. Procedeu à chamada regulamentar com “voz firme e serena”... Na sequência anunciou que, embora a revisão dos últimos exercícios tivesse sido marcada para a próxima semana, resolvera adiantar o trabalho na última noite. Portanto as folhas de respostas estavam com os devidos registros... Em vez do simples arquivamento, os alunos poderiam manifestar as razões que os teriam levado ao erro... E acrescentou que, dependendo das justificativas, a nota também seria alterada para melhor.
Os rapazes não conseguiram disfarçar sua satisfação...
Estava claro que o mau humor do professor havia se dissipado.
(...)
Após o almoço aconteceu uma reunião do diretor com os seus professores.
O assunto tinha como eixo a proposta de “atualização pedagógica”... De tempos
em tempos as equipes educacionais das unidades escolares recebem documentos a
respeito dos aproveitamentos e expectativas, são chamados ao debate quase
sempre depois que tudo já foi definido pelos especialistas dos gabinetes...
Nos dizeres de Saramago, as ditas reuniões sobre as propostas
de “atualização pedagógica fazem da vida dos infelizes docentes uma tormentosa
viagem a Marte através de uma interminável chuva de ameaçadores asteroides que,
com demasiada frequência, acertam em cheio no alvo”.
O diretor e os demais docentes conheciam as ideias de Tertuliano... Ele
as repetia nas reuniões. Os colegas disfarçavam os risos sempre que isso
acontecia. Dessa feita não foi diferente.
O professor de História insistia em sua tese sobre a eficácia do ensino
de sua matéria... Em sua opinião, nenhuma “atualização pedagógica” resultaria
em positiva se não se levasse em consideração que os conteúdos da área de
conhecimento tinham de ser elencados “de diante para trás”... E não do modo
tradicional, que inicia o programa a partir de temas referentes aos períodos
antigos.
Como sempre, após essa repetitiva fala de Tertuliano, o diretor suspirou
e os demais professores trocaram olhares e alguns poucos murmúrios... O colega
de Matemática também sorriu diretamente para ele, mas este deu a entender que o
entendia e que aquelas propostas todas não eram para serem levadas a sério.
O olhar e “subgestos” de Tertuliano pareciam agradecer a cumplicidade,
mas também comunicavam que o episódio do corredor (antes de terem se dirigido às
salas de aulas) não fora totalmente esquecido por ele.
(...)
Isso é divertido:
Saramago “desviou sua
atenção” do professor (que tomou a palavra para defender seu ponto de vista
solidificado em argumentos consistentes) para refletir sobre a questão dos “subgestos”...
Convencionalmente entende-se
que os gestos das pessoas transmitem “dúvida, apoio, aviso de cautela”, e assim
por diante.
Não se leva em consideração que talvez a dúvida não
seja metódica, o apoio não seja incondicional, o aviso não seja
desinteressado... Dessa forma, seria preciso atentar-se aos “subgestos” para
conhecermos a “sinceridade” do que as pessoas transmitem nos diálogos que
travam.
Os “subgestos” são
como “as letrinhas pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão
lá”. Complexos, mas muito importantes, poderiam ser estudados no futuro...
Seriam classificados pela semiologia e, dessa forma, todos os que se interessam
pelo “desvelamento total” dos discursos e posturas corporais fariam suas
análises mais apuradas.
(...)
O professor que apresentava argumentos e defendia sua opinião a respeito
da proposta de “atualização pedagógica” terminou sua fala.
O diretor ia prosseguir a
rodada de intervenções quando Tertuliano pediu para falar. O chefe esclareceu que,
se o que ele tinha a dizer se referia ao que o colega acabara de dizer, devia
aguardar os demais pronunciamentos...
O professor de História esclareceu que conhecia as
normas... Nada tinha a dizer a respeito das pertinentes palavras do professor
que falara. Simplesmente pedia autorização para se retirar, pois tinha
compromissos urgentes.
Saramago brinca mais uma vez ao dizer que dessa vez não se perceberia “subgestos”
em Tertuliano, mas um “subtom” (isso demanda outros tantos divertidos esclarecimentos)
que garantia aprovação ao solicitado.
O diretor consentiu que o
professor de História se retirasse da reunião.
“Tertuliano Máximo Afonso despediu-se da assembleia
com um aceno amplo de mão, um gesto para o geral, um ‘subgesto’ para o diretor,
e saiu”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-de.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto