quarta-feira, 24 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – a aula após a desagradável conversa no corredor; reunião pedagógica após o almoço; as ideias do professor de História sobre as mudanças que deveriam ser feitas no ensino de sua disciplina; sobre “subgestos”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_24.html antes de ler esta postagem:

Tertuliano chegou à sala de aulas... Seu estado carrancudo era visível. Um dos jovens comentou com o que estava mais próximo que o professor “vinha com a mosca”.
A realidade é que o pior já havia passado. Procedeu à chamada regulamentar com “voz firme e serena”... Na sequência anunciou que, embora a revisão dos últimos exercícios tivesse sido marcada para a próxima semana, resolvera adiantar o trabalho na última noite. Portanto as folhas de respostas estavam com os devidos registros... Em vez do simples arquivamento, os alunos poderiam manifestar as razões que os teriam levado ao erro... E acrescentou que, dependendo das justificativas, a nota também seria alterada para melhor.
Os rapazes não conseguiram disfarçar sua satisfação...
Estava claro que o mau humor do professor havia se dissipado.
(...)
Após o almoço aconteceu uma reunião do diretor com os seus professores. O assunto tinha como eixo a proposta de “atualização pedagógica”... De tempos em tempos as equipes educacionais das unidades escolares recebem documentos a respeito dos aproveitamentos e expectativas, são chamados ao debate quase sempre depois que tudo já foi definido pelos especialistas dos gabinetes...
Nos dizeres de Saramago, as ditas reuniões sobre as propostas de “atualização pedagógica fazem da vida dos infelizes docentes uma tormentosa viagem a Marte através de uma interminável chuva de ameaçadores asteroides que, com demasiada frequência, acertam em cheio no alvo”.
O diretor e os demais docentes conheciam as ideias de Tertuliano... Ele as repetia nas reuniões. Os colegas disfarçavam os risos sempre que isso acontecia. Dessa feita não foi diferente.
O professor de História insistia em sua tese sobre a eficácia do ensino de sua matéria... Em sua opinião, nenhuma “atualização pedagógica” resultaria em positiva se não se levasse em consideração que os conteúdos da área de conhecimento tinham de ser elencados “de diante para trás”... E não do modo tradicional, que inicia o programa a partir de temas referentes aos períodos antigos.
Como sempre, após essa repetitiva fala de Tertuliano, o diretor suspirou e os demais professores trocaram olhares e alguns poucos murmúrios... O colega de Matemática também sorriu diretamente para ele, mas este deu a entender que o entendia e que aquelas propostas todas não eram para serem levadas a sério.
O olhar e “subgestos” de Tertuliano pareciam agradecer a cumplicidade, mas também comunicavam que o episódio do corredor (antes de terem se dirigido às salas de aulas) não fora totalmente esquecido por ele.
(...)
Isso é divertido:
Saramago “desviou sua atenção” do professor (que tomou a palavra para defender seu ponto de vista solidificado em argumentos consistentes) para refletir sobre a questão dos “subgestos”...
Convencionalmente entende-se que os gestos das pessoas transmitem “dúvida, apoio, aviso de cautela”, e assim por diante.
Não se leva em consideração que talvez a dúvida não seja metódica, o apoio não seja incondicional, o aviso não seja desinteressado... Dessa forma, seria preciso atentar-se aos “subgestos” para conhecermos a “sinceridade” do que as pessoas transmitem nos diálogos que travam.
Os “subgestos” são como “as letrinhas pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão lá”. Complexos, mas muito importantes, poderiam ser estudados no futuro... Seriam classificados pela semiologia e, dessa forma, todos os que se interessam pelo “desvelamento total” dos discursos e posturas corporais fariam suas análises mais apuradas.
(...)
O professor que apresentava argumentos e defendia sua opinião a respeito da proposta de “atualização pedagógica” terminou sua fala.
O diretor ia prosseguir a rodada de intervenções quando Tertuliano pediu para falar. O chefe esclareceu que, se o que ele tinha a dizer se referia ao que o colega acabara de dizer, devia aguardar os demais pronunciamentos...
O professor de História esclareceu que conhecia as normas... Nada tinha a dizer a respeito das pertinentes palavras do professor que falara. Simplesmente pedia autorização para se retirar, pois tinha compromissos urgentes.
Saramago brinca mais uma vez ao dizer que dessa vez não se perceberia “subgestos” em Tertuliano, mas um “subtom” (isso demanda outros tantos divertidos esclarecimentos) que garantia aprovação ao solicitado.
O diretor consentiu que o professor de História se retirasse da reunião.
“Tertuliano Máximo Afonso despediu-se da assembleia com um aceno amplo de mão, um gesto para o geral, um ‘subgesto’ para o diretor, e saiu”.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas