É verdade que o cansaço mental e a fadiga do corpo derrubaram Tertuliano.
O professor de História atirou-se sobre as almofadas do sofá... Mas ele não teve repouso. Evidentemente os questionamentos não lhe deram trégua.
Alguns minutos se passaram e novamente seus olhos piscaram... Suas últimas reflexões sobre o “verdadeiro” e o “erro” voltaram a intrigá-lo... Afinal um dos dois, ele ou o ator secundário de “Quem Porfia Mata Caça”, devia ser o original, ou seja, o “verdadeiro”...
(...)
Esse
pensamento levou-o à certeza de que um deles era a cópia, o “erro”.
Tertuliano delirou... Em
sonho via-se no mesmo hotel, diante do empregado que era o seu “retrato vivo” e
da bela Inês... O tipo dizia-lhe que um dos dois era o “erro”... À Inês de
Castro informava que seu quarto era o “doze-dezoito”. Também o professor de
Matemática apareceu nessa divagação, e Tertuliano perguntou-lhe “de quantas
incógnitas” era aquela equação (o “doze-dezoito”)... O colega não respondeu,
mas aconselhou-o a mergulhar num sono que lhe proporcionasse repouso.
De
fato era disso que precisava. Era isso o que desejava.
(...)
No
entanto, mais uma vez Tertuliano despertou de um estado de
“meio-adormecimento”.
A
necessidade de conversar com o professor de Matemática a respeito dos motivos
que o levaram a sugerir-lhe “Quem Porfia Mata Caça” o agitou...
Uma produção de cinco anos, de baixo orçamento e de
repercussão insignificante... Quem teria se interessado por aquele fracasso de
bilheteria?
Podia ser que o gosto do
professor de Matemática fosse duvidoso... Mas no raciocínio de Tertuliano
crescia a suspeita de que o colega só podia ter reconhecido o fenômeno da
“duplicidade”. Se assim era, por que não o alertou sobre a possibilidade de se
assustar enquanto assistisse à comédia?
(...)
Se não havia nenhuma
intenção do outro, então a coincidência caía-lhe como um golpe daqueles de
arrasar a pessoa...
De fato, jamais
experimentara noite como aquela. Esforçou-se para levantar e dirigiu-se à
vidraça...
Predominava a escuridão... Todavia
a manhã do novo dia anunciava-se nas alturas. Pelo menos podia ter certeza de
que a descoberta da duplicidade não era sinal de que o fim do mundo havia
chegado.
(...)
Foi
nesse momento que o Senso Comum de Tertuliano apareceu para dar-lhe
conselhos... O professor sabia que já fazia um tempo que não conversavam.
Aquele era mesmo um momento propício.
O Senso Comum foi dizendo
que, se ele achava que devia pedir uma explicação ao colega de Matemática, era
melhor que o fizesse de uma vez... Emendou que, definitivamente, não era
interessante “andar por aí” carregado de dúvidas e interrogações... Mas
recomendou que não falasse demais, pois seria preferível livrar-se o quanto
antes da “batata quente” que tinha nas mãos para não se “queimar”.
O
Senso Comum (que você pode relacionar à Razão) queria dizer que Tertuliano
tinha de devolver imediatamente a fita à locadora e “colocar uma pedra sobre o
assunto”. A sentença era essa: acabar com o mistério antes que ele resultasse
em revelações que provocassem maiores perturbações.
Pelo
visto havia uma pessoa que era a sua cópia (ou o contrário)... Mas o Senso
Comum ressaltava que isso não era motivo para sair à sua procura. Até então
jamais haviam se cruzado e isso em nada alterara o seu modo de ser. Por que
haveria de procurar confusões?
Tertuliano
quis saber o que devia fazer no caso de encontrar o tipo numa rua por acaso...
O Senso Comum respondeu que o correto a se fazer era virar-lhe a cara.
Um
“não te vi, não te conheço”... Mas Tertuliano ressaltou que o outro poderia
dirigir-lhe palavra. O Senso Comum insistiu que se o outro tiver um mínimo de
sensatez procederá da mesma maneira.
O
professor insistiu... Mostrou-se preocupado com a possibilidade e ressaltou que
nem todos são sensatos... O Senso Comum concordou e afirmou que era por isso
que “o mundo está como está”... Depois acrescentou que, no caso de o outro se
dirigir a ele, poderia responder qualquer coisa breve a respeito da
coincidência e logo interromper o diálogo.
Assim
mesmo...
Sem mais nem menos...
Sem se importar em parecer indelicado, pois às
vezes essa é a única maneira de se “evitar males maiores”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-da.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto