Tertuliano banhou-se... Evitou o espelho no momento de se pentear.
Fez a primeira refeição do dia na cozinha... Torradas, suco de laranja, café com leite e iogurte. Saramago tece comentário sobre a necessidade de o professor não descuidar da alimentação, ainda que não vislumbre resultados positivos da parte de seus alunos.
O expediente não começava antes das onze horas... Mas Tertuliano não estava disposto a permanecer por mais tempo em casa. Enquanto escovava os dentes, notou a espuma que secava aos poucos e escondia o reflexo do espelho...
Lembrou-se que não era dia de faxina na casa...
Há seis anos a limpeza do apartamento era feita pela vizinha do andar de cima. A mulher era viúva, já tinha certa idade e também vivia só. Estava habituada à organização do professor, então certamente estranharia a falta de cuidado com o espelho.
(...)
Pronto para sair, Tertuliano decidiu que o trajeto até a escola seria de
reflexões sobre as revelações da última noite... Não utilizaria o transporte
público, como fazia normalmente, e sim o castigado automóvel...
Estava bem adiantado... Mas resolveu que faria o
percurso de carro para ter um pouco de sossego. Depois de acomodar os
exercícios na pasta, parou por um instante diante do aparelho de vídeo... Se
fosse para seguir os conselhos do Senso Comum, retiraria a fita para entregá-la
à locadora, onde inventaria uma desculpa qualquer para a devolução antecipada.
Todavia o professor passou adiante.
Imprimiu uma condução lenta
ao veículo como se estivesse a passear pela cidade... Não tinha pressa... Não
protestou contra os sinais vermelhos... Não tinha motivo para isso...
Enquanto dirigiu não conseguiu encontrar explicações para o caso da
duplicação... Tinha certeza apenas de que era senhor do caso e em suas mãos
estava o poder de decidir o que fazer... Já divisava o prédio escolar quando
sentenciou para si mesmo que não podia se livrar daquela loucura, sepultá-la e
esquecê-la... Concluiu que não era capaz disso e, ao mesmo tempo, via-se
obcecado por respostas para a aberração.
(...)
Acomodou-se na sala dos professores.
Faltava muito tempo para as aulas começarem. Então colocou os exercícios
dos alunos sobre a mesa e disfarçou uma “revisão da correção” para dar ares de
normalidade à sua chegada antecipada. Porém nem ele mesmo acreditava que levassem
a atividade a sério...
Depois de algum tempo, o
professor de Matemática chegou à sala. No mesmo instante dirigiu-se para perto
de Tertuliano... Cumprimentou-o e perguntou se o atrapalhava. O da cadeira de
História improvisou que estava apenas a “passar uma segunda vista de olhos” nas
atividades dos alunos...
Falaram brevemente sobre o aproveitamento
dos estudantes... O de Matemática concordou que a rapaziada não se diferenciava
em muito do que eles mesmos haviam sido em seu tempo de secundaristas.
Tertuliano esperava
que o outro entrasse no assunto do filme... Mas o de Matemática levantou-se para
servir-se de café animado pela conversa sobre o desempenho da estudantada. Depois
pegou o jornal e pôs-se a folheá-lo... Deteve-se um pouco mais diante de alguns
títulos, franziu o nariz e lamentou a situação geral do mundo.
Na sequência, levantou a questão sobre a origem das
catástrofes de nosso tempo e quis saber a opinião de Tertuliano. De acordo com
o entendimento do matemático, as gerações mais antigas tinham parcelas de
culpa... Sentenciou que também eles deviam se sentir culpados.
Em seu íntimo, Tertuliano esperava que, de alguma maneira, aquele
assunto fluísse para “Quem Porfia Mata Caça”... Pediu para o colega se explicar
melhor. Então o de Matemática começou uma analogia sobre um cesto com laranjas
que vão apodrecendo aos poucos sem que ninguém consiga definir o princípio de
toda podridão...
Tertuliano perguntou se as laranjas eram os
países ou as pessoas... O outro explicou que a situação variava de acordo com a
tese que se quisesse formular... Os países são constituídos por seus
habitantes; no mundo há os países... E “como não há países sem pessoas, é por
elas que o apodrecimento se principia”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-para.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto