domingo, 21 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – Tertuliano antecipa a saída para o trabalho, assim refletirá sobre a duplicidade com o ator de “Quem Porfia Mata Caça”; optou por não entregar a fita conforme a orientação do seu Senso Comum; uma conversa com o colega de Matemática sobre os problemas do mundo

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-da.html antes de ler esta postagem:

Tertuliano banhou-se... Evitou o espelho no momento de se pentear.
Fez a primeira refeição do dia na cozinha... Torradas, suco de laranja, café com leite e iogurte. Saramago tece comentário sobre a necessidade de o professor não descuidar da alimentação, ainda que não vislumbre resultados positivos da parte de seus alunos.
O expediente não começava antes das onze horas... Mas Tertuliano não estava disposto a permanecer por mais tempo em casa. Enquanto escovava os dentes, notou a espuma que secava aos poucos e escondia o reflexo do espelho...
Lembrou-se que não era dia de faxina na casa...
Há seis anos a limpeza do apartamento era feita pela vizinha do andar de cima. A mulher era viúva, já tinha certa idade e também vivia só. Estava habituada à organização do professor, então certamente estranharia a falta de cuidado com o espelho.
(...)
Pronto para sair, Tertuliano decidiu que o trajeto até a escola seria de reflexões sobre as revelações da última noite... Não utilizaria o transporte público, como fazia normalmente, e sim o castigado automóvel...
Estava bem adiantado... Mas resolveu que faria o percurso de carro para ter um pouco de sossego. Depois de acomodar os exercícios na pasta, parou por um instante diante do aparelho de vídeo... Se fosse para seguir os conselhos do Senso Comum, retiraria a fita para entregá-la à locadora, onde inventaria uma desculpa qualquer para a devolução antecipada.
Todavia o professor passou adiante.
Imprimiu uma condução lenta ao veículo como se estivesse a passear pela cidade... Não tinha pressa... Não protestou contra os sinais vermelhos... Não tinha motivo para isso...
Enquanto dirigiu não conseguiu encontrar explicações para o caso da duplicação... Tinha certeza apenas de que era senhor do caso e em suas mãos estava o poder de decidir o que fazer... Já divisava o prédio escolar quando sentenciou para si mesmo que não podia se livrar daquela loucura, sepultá-la e esquecê-la... Concluiu que não era capaz disso e, ao mesmo tempo, via-se obcecado por respostas para a aberração.
(...)
Acomodou-se na sala dos professores.
Faltava muito tempo para as aulas começarem. Então colocou os exercícios dos alunos sobre a mesa e disfarçou uma “revisão da correção” para dar ares de normalidade à sua chegada antecipada. Porém nem ele mesmo acreditava que levassem a atividade a sério...
Depois de algum tempo, o professor de Matemática chegou à sala. No mesmo instante dirigiu-se para perto de Tertuliano... Cumprimentou-o e perguntou se o atrapalhava. O da cadeira de História improvisou que estava apenas a “passar uma segunda vista de olhos” nas atividades dos alunos...
Falaram brevemente sobre o aproveitamento dos estudantes... O de Matemática concordou que a rapaziada não se diferenciava em muito do que eles mesmos haviam sido em seu tempo de secundaristas.
Tertuliano esperava que o outro entrasse no assunto do filme... Mas o de Matemática levantou-se para servir-se de café animado pela conversa sobre o desempenho da estudantada. Depois pegou o jornal e pôs-se a folheá-lo... Deteve-se um pouco mais diante de alguns títulos, franziu o nariz e lamentou a situação geral do mundo.
Na sequência, levantou a questão sobre a origem das catástrofes de nosso tempo e quis saber a opinião de Tertuliano. De acordo com o entendimento do matemático, as gerações mais antigas tinham parcelas de culpa... Sentenciou que também eles deviam se sentir culpados.
Em seu íntimo, Tertuliano esperava que, de alguma maneira, aquele assunto fluísse para “Quem Porfia Mata Caça”... Pediu para o colega se explicar melhor. Então o de Matemática começou uma analogia sobre um cesto com laranjas que vão apodrecendo aos poucos sem que ninguém consiga definir o princípio de toda podridão...
Tertuliano perguntou se as laranjas eram os países ou as pessoas... O outro explicou que a situação variava de acordo com a tese que se quisesse formular... Os países são constituídos por seus habitantes; no mundo há os países... E “como não há países sem pessoas, é por elas que o apodrecimento se principia”...
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas