terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vamos ao comício...

Decidi publicar este texto.

Trata-se de outro material que gosto de utilizar com os meus alunos. O texto é do saudoso Marcos Rey, cronista como poucos, falecido no início de 1999.

Nessa crônica, Rey trata dos comícios que ocorriam entre 1946 e 1964. Meu interesse é tratar desse gênero de texto, aproveitando a temática relacionada ao populismo, à redemocratização Pós-Estado Novo, à situação das eleições contemporâneas e as campanhas eleitorais midiáticas.

O texto foi escrito em 1996, ano de eleições municipais. Ao escrever sobre o caráter obrigatório e enfadonho das campanhas criadas por marqueteiros profissionais, cheias de recursos da computação (mais tarde se tornaram proibidos), Marcos Rey retoma o seu passado e a época dos grandes comícios, quando os candidatos se esforçavam para serem notados como extremamente populares e faziam do palanque “um palco iluminado”.

Cena de Jânio Quadros em comício

Extraído de http://macariobatista.blogspot.com (21/09/2010;19:30)

O texto cita alguns políticos que marcaram nossa história: Vargas, Jânio e Ademar de Barros estão presentes, bem como um Cauby Peixoto, galã de seu tempo... Todos apresentados com a espontaneidade de quem vivenciou os discursos e as “encenações” eleitoreiras.

Percebam que há um erro quando ele cita o Queremismo como um movimento que pretendia o “retorno do ex-ditador”; na verdade esse movimento ocorreu em 1945 (Vargas já estava no poder desde 1930!) quando sindicatos e o PCB pretendiam a permanência de Vargas na presidência, o adiamento das eleições para que ele próprio se candidatasse e a Assembleia Constituinte iniciasse os trabalhos. Esse errinho não desmerece o texto, e até ele pode ser trabalhado com os alunos para uma melhor compreensão dos temas.

Segue o texto:


VAMOS AO COMÍCIO – QUANDO O PALANQUE ERA UM PALCO ILUMINADO

Texto de Marcos Rey, Revista Veja de 4/setembro/1996

Quando as eleições se aproximam lembro-me com certa saudade dos animados comícios anteriores a 1964. Grandes espetáculos noturnos, eles lotavam as principais praças e os grandes espaços paulistas, como o Anhangabaú – a praça do povo -, atraindo multidões. Os de encerramento de campanha, chamados de comícios-monstro, eram anunciados espalhafatosamente por ensurdecedores alto-falantes fixados em carros que a semana inteira percorriam as ruas da cidade. Uma festa à qual só não ia quem já morrera.

A prática de freqüentar comícios vinha de longe. Meus pais e meus tios viveram num tempo em que era até perigoso. Um deles sempre voltava sem sapato ou com escoriações, devido a muito corre-corre. Eu só comecei a assistir a comícios depois da queda do Estado Novo, em 1945, com o retorno da democracia. Nos tempos da ditadura getulista havia, sim, comícios, mas raros. E se ouvia apenas uma voz trêmula, de todos conhecida através do rádio: “Trabalhadores do Brasil...”. A do próprio ditador, dirigida a um público ordeiro que chegava de ônibus e caminhões, já aplaudindo. Nesses não havia correrias, pois ninguém teria coragem de contestar o poderoso orador. Até permanecer frio, indiferente, distraído, podia ser arriscado.

Nos anos 50 os comícios começaram a ser televisionados, embora poucas casas tivesses aparelho de TV. Lembro-me de Adhemar de Barros, sempre candidato a prefeito, governador ou presidente da República, comandando: “Para a frente e para o alto!” Dominando o vídeo com a sua barriga, e sem paletó para mostrar que era um dos nossos, invocava o testemunho de dona Leonor, sua santa mulher, que absolutamente não o deixava mentir. Embora nem sempre o público fosse grande, o próprio Adhemar, médico solícito,carregava para o palanque os correligionários que premidos pelo povão, desmaiavam. Cauby Peixoto, o cantor da moda, já ensinara a importância do charme nos desmaios.

Outro astro dos comícios foi Jânio Quadros, que se esmerava em ser em tudo o oposto de Adhemar, seu mais constante adversário. Exibindo uma magreza ostensiva, roupas cobertas de nódoas, além de caspas, que diziam ser de origem industrial, aguardava sua vez de falar mastigando intermináveis sanduíches de mortadela. Comer sanduíche em público era uma peça da campanha do tostão contra o milhão, bolada por um famoso publicitário da época. Como as nódoas e as caspas, ajudava a fixar a figura do candidato modesto, o próprio povo, esmagado pelos poderosos e corruptos, que prometia varrer com sua varre, varre, vassourinha. Para contrastar com a gíria e a gaitice verbal do concorrente, Jânio, professor e escritor bissexto, expressava-se num português arcaico que soava na praça como um retorno aos bons costumes, embora não menos engraçado que o de Adhemar. O fi-lo porque qui-lo foi uma de suas jóias estilísticas, certamente com algum rendimento eleitoral.

A grande fase dos comícios foi a do queremismo: “Nós queremos Ge-tú-lio, nós queremos Ge-tú-lio”, o movimento ritmado que exigia o retorno do ex-ditador. Eram seus partidários os veementes marmiteiros, comandados por Hugo Borghi, duas vezes candidato derrotado ao governo do estado.

O comício nada tinha a ver com o horário político, sem graça, reduzido, imposto, imóvel, frio. Dele o espectador também participava bradando, ameaçando, dançando ou mesmo desmaiando, como os ademaristas. Uma farra para todos. E o palanque, iluminado, era um palco onde os políticos podiam prometer o que lhes desse na telha, representar à vontade, jurar, xingar, dançar e, ao som dos fogos de artifício, repetir sem pejo seus velhos chavões: “Neste bolso jamais entrou dinheiro público...”


Um abraço,

Prof.Gilberto

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