sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – fim do segundo conto; uma “versão podálica” muito bem realizada; mãe e bebê salvos e aptos para a recuperação na enfermaria; elogios de Anna Nikoláievna, que descarta qualquer risco de contaminação; temores indizíveis; de volta ao gabinete depois de duas horas; das vantagens do trabalho junto à gente do campo; é preciso ler, ler, ler


Não temos detalhes do parto...
As “anotações” esclarecem que ao final dos procedimentos o que mais chamava a atenção do jovem doutor era a poça de sangue. E sangue por toda parte! Nos lençóis e em incontáveis fragmentos de gaze.
Certamente preocupado, observava Pelagueia Ivánovna com o bebê no colo, a sacudi-lo e dando-lhe leves palmadas. A criança pendia a pequena cabeça de um lado para outro. Demorava a reagir, mas era uma questão de tempo...
Aksínia preparou duas bacias, uma com água morna e outra com água fria, e o recém-nascido era imerso numa e noutra alternadamente. Aos poucos perceberam um leve suspiro e um tímido balbuciar, suficientes para desencadear uma onda de otimismo...
A parteira anunciou que o bebê estava vivo e o colocou num travesseiro. O jovem doutor voltou sua atenção para a mãe e constatou que também ela estava viva, seu pulso estava “regular e nítido”. O enfermeiro Lukitch se animou a despertá-la.
(...)
As assistentes começaram a reorganizar a sala. Os lençóis utilizados durante o parto foram retirados e cobriram a mãe com um limpo. Na sequência Lukitch e Aksínia a levaram para a enfermaria. O recém-nascido foi levado logo depois, já limpo, de fralda e chorando com maior regularidade.
A experiente Anna Nikoláievna estava visivelmente cansada... Fumava enquanto rememorava o caso. De repente sentenciou ao jovem médico que ele havia feito “uma versão muito boa, com muita confiança”. O rapaz desconfiou que aquele elogio pudesse ser de zombaria, mas não era o que indicava sua expressão. Isso o deixou contente, então contemplou a sala ainda não de todo organizada, mesa e bacias com sinais de sangue... E por um momento sentiu-se vencedor.
Mas em seu íntimo uma dúvida o incomodava... E ela tinha a ver com os procedimentos invasivos aos quais havia submetido a parturiente. Em resposta à afirmação da parteira, disse que ainda precisavam conferir o que ocorreria “daqui para diante”.
Nikoláievna mostrou-se surpresa com os temores do jovem doutor... Perguntou-lhe o que poderia ocorrer se tudo havia terminado muito bem. Ele não sabia o que dizer, embora em seu íntimo preocupava-se com a saúde da mulher, afinal o parto havia sido dos mais arriscados e não seria improvável que “algum dano” lhe tivesse sido provocado.
Sobretudo, o fato de ainda ser inexperiente o amargurava. O que conhecia de obstetrícia? Bem pouco, pois se baseava nos estudos dos livros, e sabia que em relação à prática isso era "um nada" e até impreciso. Em suas reflexões assustava-se com a possibilidade de a mulher sofrer uma ruptura a qualquer momento...
E se isso viesse mesmo a ocorrer? Talvez o problema fosse detectado tempos depois, mas ainda assim se sentiria amargurado e responsável pelo infortúnio da paciente.
Decidiu não compartilhar essas angústias com Nikoláievna... E vez disso, resolveu dizer-lhe algo que os manuais alertavam logo na introdução dos estudos sobre a obstetrícia e disse que “não podiam excluir uma contaminação”. A parteira respondeu calmamente com um “se Deus quiser não vai acontecer nada”, e emendou que não havia qualquer possibilidade de contaminação porque tudo o que utilizaram havia sido muito bem esterilizado.
(...)
O fim do segundo conto:
Podemos pensar que todo o processo de parto desde a anestesia tenha durado muitas horas... No entanto, considerando-se que o jovem doutor deixou a casa à meia-noite, e que retornou do hospital pouco depois das duas da manhã, conclui-se que o caso tenha sido resolvido neste intervalo.
Logo que entrou no gabinete notou que havia lançado o manual Döderlein sobre a mesa e que o livro continuava “aberto na página ‘Riscos da versão’”. Estava como que a convidá-lo à leitura... E foi isso mesmo o que ele acabou fazendo. Serviu-se de uma chávena de chá frio e leu por uma hora.
A leitura e a análise das gravuras foram prazerosas e proveitosas. Deteve-se em alguns trechos ao notar que eles esclareciam e “tornavam completamente compreensíveis” as partes que haviam ficado confusas para ele. Como sempre ocorria quando devotava tempo à leitura silenciosa e solitária, avaliou que mesmo em um “fim de mundo” como Múrievo podia entender “o que é o verdadeiro conhecimento”.
Respirou fundo e antes de adormecer sentenciou para si mesmo que “pode-se adquirir muita experiência no campo” e que para isso “é preciso ler, ler, ler... mais um pouquinho...”.
Continua?
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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