segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – examinando a parturiente de Dultsevo depois de admitir o diagnóstico preliminar de Anna Nikoláievna; recordações das demonstrações práticas nos seguros e bem limpos ambientes da universidade; o doutor Döderlein e seu manual de ginecologia e obstetrícia; “concluindo” a necessidade de uma “versão podálica”; escapando até os livros durante os preparativos para a anestesia; frases nada animadoras a respeito da intervenção cirúrgica


O jovem doutor admitiu que o diagnóstico da experiente Anna Nikoláievna estivesse correto... Apalpou a barriga da parturiente sem saber exatamente como teria de proceder na sequência e anunciou que precisava “examinar por dentro”. Ficou satisfeito ao notar que a parteira demonstrava aprovação a mais essa iniciativa.
Aksínia foi chamada para nova higienização. Enquanto esfregava as mãos e se livrara da abundante espuma, pensou que seria muito bom se pudesse “consultar o Döderlein”*, o valioso manual de obstetrícia que estava no gabinete da casa.
Deu início à nova etapa do exame e lembrou-se de seu tempo de universidade e mais especificamente de uma demonstração dos procedimentos que deviam ser adotados em delicadas operações obstétricas... O ambiente ladrilhado, bem iluminado e equipado com diversas pias e “aparelhos cintilantes” surgiu em sua mente. Demonstrações como aquela eram sempre muito seguras, a parturiente recebia o amparo de um assistente e de mais três estagiários residentes... Havia ainda a participação dos estudantes que atuavam como monitores. Além disso, as consultas pré-parto permitiam um diagnóstico detalhado das condições da voluntária. Sem dúvida um cenário plenamente favorável que em nada tinha a ver com o caso que teria de resolver.

                   *A respeito de Albert Sigmund Gustav Döderlein, a tradutora esclarece em nota que foi um respeitado “ginecologista e doutor em medicina alemão” que elaborou um detalhado manual orientador da prática obstetrícia.

(...)

Mais uma vez sentiu o peso da responsabilidade de solucionar um caso gravíssimo... Aquela desconhecida mulher tinha a vida em suas mãos. As dores que estava sofrendo eram uma indicação de que o pior podia acontecer a qualquer momento.
Para ele não se tratava apenas de salvar a paciente, devia dar conta da situação para que continuasse a ser aprovado pela equipe e comunidade. Novamente a sua pouca experiência o colocava em situação delicada simplesmente porque não sabia como atuar. Durante sua formação em Kiev havia assistido a dois partos “completamente normais”.
O exame interno não resultava em qualquer conclusão e ele sabia que era preciso dar encaminhamentos, então anunciou que o caso era mesmo de “situação transversa”. Disse isso e deu a entender que emendaria o que deveriam fazer, mas interrompeu propositadamente de modo a dar oportunidade às manifestações de Anna Nikoláievna. De fato, ela mantinha-se compenetrada e certamente aprovando a todas ações e palavras do jovem doutor, e completou, talvez dizendo a si mesma, que tinham de fazer uma “versão podálica”.
Certamente um médico experiente como o doutor Leopold a teria censurado com o olhar por ter se intrometido, mas obviamente este não era o caso do jovem doutor, que tratou de confirmar a “versão podálica”. No mesmo instante tentou puxar pela memória as páginas do manual do renomado Gustav Döderlein, todavia só lhe chegavam páginas sobre “versão direta, versão combinada e versão indireta” com alguns desenhos da anatomia da parturiente e dos bebês com cabeças desproporcionais, “bracinhos pendentes, com um nó em volta”.
(...)
Essas imagens estavam frescas em sua memória, pois não fazia muito tempo que as estudara com o cuidado de grifar os trechos mais importantes. Podia dizer tinha as páginas “impressas em seu cérebro”. Acontece que no momento a única frase que conseguia rememorar a respeito de “situação transversal” era a de que se tratava de “uma situação absolutamente desfavorável”.
Essa última intervenção trouxe alívio ao jovem doutor, que só então ficou sabendo que os procedimentos seriam realizados sob anestesia. Mas prevalecia a carência de informações e por isso resolveu que tinha de consultar com urgência o manual Döderlein. Disse que a equipe devia preparar a anestesia enquanto ele iria “buscar alguns cigarros”. A experiente parteira respondeu que estava tudo bem, pois daria para ir e voltar com tempo de folga. Aksínia ajudou-o a colocar o casaco nas costas e ele seguiu imediatamente sem sequer vestir as mangas.
Ao chegar ao gabinete seguiu direto para a estante de livros e apanhou o manual... Tudo o que podia fazer era folheá-lo com rapidez na esperança de coletar as informações necessárias para a intervenção que devia executar... Acontece que as frases que conseguiu captar às pressas deixaram-no ainda mais assustado: “... a versão sempre representa uma operação perigosa para a mãe...”; “o principal perigo consiste na possibilidade de rompimento espontâneo do útero”.
Como se pode notar a leitura não era das mais animadoras. Mas isso era apenas o começo.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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