Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_9.html antes
de ler esta postagem:
Os vasos sanguíneos podiam começar a sangrar a
qualquer momento. O jovem doutor esperava que isso ocorresse, mas não sabia o
que faria na sequência.
O enfermeiro organizou
várias pinças e alicates bem próximos a ele. Manipulou mais uma vez o bisturi
afiado e cortou a perna da menina até chegar a um dos vasos, que estava
esbranquiçado... Por ali o sangue não circulava, então o cortou e deu
prosseguimento à investigação enquanto se esforçava para identificar o que
podia ser uma artéria.
As muitas pinças foram empregadas na retirada de fragmentos... Por fim o
doutor atingiu o ponto que devia ser serrado. Pegou a serra cirúrgica de
“dentes miúdos” e cortou com todo cuidado o osso redondo. Enquanto fazia o
movimento do vai-e-vem pensava a respeito da resistência daquele organismo. Não
podia crer que havia resistido a tantos golpes e concluiu que “o ser humano é
mesmo tenaz”.
Assim que o osso se
desligou do esqueleto, Demián Lukitch pôde afastar o que havia restado da perna
da garota, “um emaranhado de carne e ossos”. Na mesa de cirurgia ficou o corpo
que parecia ter sido “encurtado em um terço”. O doutor o olhava e implorava em
prece para que não morresse imediatamente, que aguentasse até a enfermaria para
que não o vissem como responsável pelo “lastimável fracasso”.
(...)
Seus assistentes trataram
de aplicar as ataduras. Depois foi o momento de realizar as suturas. Também
essa tarefa não foi das mais tranquilas, já que ele sentia as pernas trêmulas e
o suor a lhe invadir as pálpebras. Estava aflito, mesmo assim conseguiu
concluir que devia permitir que “um pouco de sangue e de fluidos” escorresse
das partes que costurava... Fez isso e utilizou gaze para a necessária limpeza.
Seus pensamentos se
dividiam entre os procedimentos que pretendia realizar da melhor maneira
possível e o medo de que a menina falecesse a qualquer momento... Contemplou o
rosto cadavérico e quis saber se ela ainda vivia... Lukitch e Anna Nikoláievna
responderam ao mesmo tempo e confirmaram que sim. O enfermeiro se aproximou
para sussurrar que duraria bem pouco e, em tom de conselho, sugeriu que talvez fosse
mais razoável não realizar qualquer procedimento na perna direita, que o melhor
seria enrolá-la com gaze e transferir a menina imediatamente para enfermaria. O
rapaz chegou mesmo a opinar que deviam fazer isso antes que ela morresse na
sala de operações.
De certo modo as palavras
do enfermeiro indicavam suas suspeitas em relação aos temores do jovem doutor.
Este reagiu no mesmo instante e, sem que soubesse de que parte de seu interior
surgia o impulso, exigiu que lhe entregassem o gesso.
(...)
Resolveu engessar a perna
direita da menina... O trabalho foi árduo e exigiu empenho máximo também dos
assistentes. A movimentação em torno da “meio morta” foi intensa... O jovem
doutor modelou o gesso e resolveu deixar uma abertura bem no local fraturado.
Surpreso, Demián Lukitch disse que a menina continuava viva. Sem perder
tempo conduziram-na para a enfermaria. Enquanto lavava mãos e braços na sala de
operações, o médico percebeu certa movimentação no corredor provocada pelo pai
desesperado, que foi contido por auxiliares de enfermagem.
A cirurgia havia sido surpreendentemente satisfatória e Anna Nikoláievna
quis saber se ele já havia feito muitas outras amputações. Fez a pergunta ao
mesmo tempo aprovando o desempenho do jovem doutor, que em nada devia ao do doutor
Leopold. O rapaz encheu-se de orgulho ao ouvir que estava sendo comparado ao
venerado mito... Constatou que os demais também o olhavam com admiração e
respeito. Resolveu mentir e responder que já havia realizado duas amputações.
Depois aproximou-se do enfermeiro e discretamente o orientou a chamá-lo assim
que a menina falecesse. Lukitch disse que “tudo bem” e que estava “às ordens”.
(...)
De volta ao gabinete da casa que lhe fora
destinada, o jovem doutor pôs-se diante da vidraça e contemplou o próprio
rosto... Pensou que não se parecia com o “falso Dimitri” (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_5.html) e que até já não via um rosto tão jovem. Imaginou que em pouco tempo o
chamariam para comunicar a morte da garota.
Mas ela não morreu. A
cirurgia a salvou. Depois de dois meses, provavelmente o tempo de sua
recuperação no hospital, o pai a levou para agradecer-lhe... O homem que
contava uns quarenta e cinco anos tinha os olhos brilhantes, enquanto a filha
caminhava apoiada em duas muletas, continuava bela e trajava uma longa saia de
muito bom gosto. Assim que a viu, o jovem médico anotou um endereço de Moscou
onde poderiam conseguir uma prótese.
O pai não se conteve de tanta alegria e pediu à filha que beijasse a mão
do competente doutor. Um tanto atrapalhado, o rapaz beijou o nariz da menina...
Ela trazia um embrulho, uma grande toalha que havia bordado para ele de
presente.
Ele lembrou que sempre que
a visitava na enfermaria, ela escondia algo debaixo do travesseiro. Só podia
ser o bordado! Algo simples, “um galo vermelho”, mas muito significativo para a
gente camponesa do lugar... Sua primeira reação foi dizer que não podia
aceitar, mas ao notar os olhos expressivos da menina resolveu receber de bom
grado.
De
acordo com as “anotações”, a toalha foi mantida em seu quarto de Múrievo e ele
a levou para outros lugares até que o pano “envelheceu, desbotou, esburacou-se
e desapareceu, como desbotam e desaparecem as recordações”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_19.html
Leia: “Anotações
de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um
abraço,
Prof.Gilberto