domingo, 13 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – fim do primeiro conto; cirurgia de amputação e espantosa resistência do organismo humano; engessamento da perna direita; um trabalho bem executado e a mudança da desconfiança para a certeza de que o doutor Leopold foi bem substituído; visita de agradecimento e toalha bordada de presente

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_9.html antes de ler esta postagem:

Os vasos sanguíneos podiam começar a sangrar a qualquer momento. O jovem doutor esperava que isso ocorresse, mas não sabia o que faria na sequência.
O enfermeiro organizou várias pinças e alicates bem próximos a ele. Manipulou mais uma vez o bisturi afiado e cortou a perna da menina até chegar a um dos vasos, que estava esbranquiçado... Por ali o sangue não circulava, então o cortou e deu prosseguimento à investigação enquanto se esforçava para identificar o que podia ser uma artéria.
As muitas pinças foram empregadas na retirada de fragmentos... Por fim o doutor atingiu o ponto que devia ser serrado. Pegou a serra cirúrgica de “dentes miúdos” e cortou com todo cuidado o osso redondo. Enquanto fazia o movimento do vai-e-vem pensava a respeito da resistência daquele organismo. Não podia crer que havia resistido a tantos golpes e concluiu que “o ser humano é mesmo tenaz”.
Assim que o osso se desligou do esqueleto, Demián Lukitch pôde afastar o que havia restado da perna da garota, “um emaranhado de carne e ossos”. Na mesa de cirurgia ficou o corpo que parecia ter sido “encurtado em um terço”. O doutor o olhava e implorava em prece para que não morresse imediatamente, que aguentasse até a enfermaria para que não o vissem como responsável pelo “lastimável fracasso”.
(...)
Seus assistentes trataram de aplicar as ataduras. Depois foi o momento de realizar as suturas. Também essa tarefa não foi das mais tranquilas, já que ele sentia as pernas trêmulas e o suor a lhe invadir as pálpebras. Estava aflito, mesmo assim conseguiu concluir que devia permitir que “um pouco de sangue e de fluidos” escorresse das partes que costurava... Fez isso e utilizou gaze para a necessária limpeza.
Seus pensamentos se dividiam entre os procedimentos que pretendia realizar da melhor maneira possível e o medo de que a menina falecesse a qualquer momento... Contemplou o rosto cadavérico e quis saber se ela ainda vivia... Lukitch e Anna Nikoláievna responderam ao mesmo tempo e confirmaram que sim. O enfermeiro se aproximou para sussurrar que duraria bem pouco e, em tom de conselho, sugeriu que talvez fosse mais razoável não realizar qualquer procedimento na perna direita, que o melhor seria enrolá-la com gaze e transferir a menina imediatamente para enfermaria. O rapaz chegou mesmo a opinar que deviam fazer isso antes que ela morresse na sala de operações.
De certo modo as palavras do enfermeiro indicavam suas suspeitas em relação aos temores do jovem doutor. Este reagiu no mesmo instante e, sem que soubesse de que parte de seu interior surgia o impulso, exigiu que lhe entregassem o gesso.
(...)
Resolveu engessar a perna direita da menina... O trabalho foi árduo e exigiu empenho máximo também dos assistentes. A movimentação em torno da “meio morta” foi intensa... O jovem doutor modelou o gesso e resolveu deixar uma abertura bem no local fraturado.
Surpreso, Demián Lukitch disse que a menina continuava viva. Sem perder tempo conduziram-na para a enfermaria. Enquanto lavava mãos e braços na sala de operações, o médico percebeu certa movimentação no corredor provocada pelo pai desesperado, que foi contido por auxiliares de enfermagem.
A cirurgia havia sido surpreendentemente satisfatória e Anna Nikoláievna quis saber se ele já havia feito muitas outras amputações. Fez a pergunta ao mesmo tempo aprovando o desempenho do jovem doutor, que em nada devia ao do doutor Leopold. O rapaz encheu-se de orgulho ao ouvir que estava sendo comparado ao venerado mito... Constatou que os demais também o olhavam com admiração e respeito. Resolveu mentir e responder que já havia realizado duas amputações. Depois aproximou-se do enfermeiro e discretamente o orientou a chamá-lo assim que a menina falecesse. Lukitch disse que “tudo bem” e que estava “às ordens”.
(...)
De volta ao gabinete da casa que lhe fora destinada, o jovem doutor pôs-se diante da vidraça e contemplou o próprio rosto... Pensou que não se parecia com o “falso Dimitri” (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_5.html) e que até já não via um rosto tão jovem. Imaginou que em pouco tempo o chamariam para comunicar a morte da garota.
Mas ela não morreu. A cirurgia a salvou. Depois de dois meses, provavelmente o tempo de sua recuperação no hospital, o pai a levou para agradecer-lhe... O homem que contava uns quarenta e cinco anos tinha os olhos brilhantes, enquanto a filha caminhava apoiada em duas muletas, continuava bela e trajava uma longa saia de muito bom gosto. Assim que a viu, o jovem médico anotou um endereço de Moscou onde poderiam conseguir uma prótese.
O pai não se conteve de tanta alegria e pediu à filha que beijasse a mão do competente doutor. Um tanto atrapalhado, o rapaz beijou o nariz da menina... Ela trazia um embrulho, uma grande toalha que havia bordado para ele de presente.
Ele lembrou que sempre que a visitava na enfermaria, ela escondia algo debaixo do travesseiro. Só podia ser o bordado! Algo simples, “um galo vermelho”, mas muito significativo para a gente camponesa do lugar... Sua primeira reação foi dizer que não podia aceitar, mas ao notar os olhos expressivos da menina resolveu receber de bom grado.
De acordo com as “anotações”, a toalha foi mantida em seu quarto de Múrievo e ele a levou para outros lugares até que o pano “envelheceu, desbotou, esburacou-se e desapareceu, como desbotam e desaparecem as recordações”.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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