quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – imperceptíveis sinais vitais e aplicação de injeções de cânfora; desaprovação dos assistentes e ousada decisão pela amputação; dos riscos de a menina morrer “sob o bisturi” e a súplica do jovem doutor para que o óbito ocorresse mais tarde; tensão anterior à operação e primeiro corte

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_8.html antes de ler esta postagem:

O jovem doutor decidiu tomar o pulso da menina... Sentiu o braço gelado e num primeiro momento não detectou batimentos. Demorou alguns segundos até que conseguisse captar uma “ondinha rara, que mal se notava”. Na sequência, verificou as narinas que estavam bem azuladas e os lábios muito pálidos.
Por um instante esteve a ponto de dizer que não havia o que fazer, mas se conteve. O pensamento o levava à conclusão de que estava diante de uma criatura “estraçalhada”, que se extinguia sem qualquer possibilidade de recuperação... Por fim restava admitir que não havia o que se pudesse fazer. Mas em vez disso, solicitou cânfora num tom de voz severo que nem ele próprio reconheceu.
Anna Nikoláievna se aproximou e quase sussurrando perguntou-lhe qual era o objetivo de aplicar a cânfora na menina. Disse que ele não conseguiria salvá-la e que em pouco estaria morta. O jovem médico mostrou-se irritado, encarou-a e insistiu para que lhe trouxessem cânfora.
A parteira sentiu-se ofendida, no entanto dirigiu-se à mesa e partiu a ampola... Via-se que Demián Lukitch também não aprovava o procedimento, mas tratou de puxar o óleo amarelado para a seringa e foi rápido ao espetar o ombro da menina. O doutor observou a movimentação e desejou mesmo que sua paciente não demorasse a morrer, pois simplesmente não tinha a menor ideia do que faria se ela sobrevivesse por mais tempo.
O enfermeiro parecia adivinhar os pensamentos do jovem médico e sentenciou ao seu ouvido que a garota faleceria em breve. O caso é que, apesar de parecer morta, a menina ainda vivia. Lukitch estava a ponto de a cobrir com o lençol, mas via-se que lamentava sujá-lo com o sangue... Algo patético, pois de qualquer modo teria de fazer isso em breve.
(...)
O doutor continuou a observar a movimentação ao seu redor enquanto buscava novos encaminhamentos para o caso que todos tinham por perdido. De repente pediu mais cânfora. O enfermeiro obedeceu e mais uma vez injetou o líquido amarelo no ombro da menina. Evidentemente preocupado com a situação, e limitado pela falta de experiência, o médico refletia sobre o que faria se ela não morresse logo...
Algumas hipóteses vieram-lhe à mente e de repente uma surgiu de modo tão inesperado que ele se surpreendeu por não ter saído de nenhum manual ou por aconselhamento. O mais incrível foi admitir que teria de realizar um procedimento que jamais fizera: uma amputação...
O drama que passou a tomar conta de suas conjecturas foi a possibilidade de a menina morrer “sob o bisturi”. Era demais! Os ferimentos em suas pernas a fizeram sangrar ao limite do insuportável. Nem se podia dizer que ela estivesse consciente, se ouvia ou podia sentir algo! a sua condição era a de um cadáver, e, no entanto, todos entenderiam que o bisturi a matou.
Só havia uma saída que o livrava da intervenção cirúrgica: a morte da garota. Mas isso também não o isentava encarar o pai dela... Como o camponês reagiria? O que lhe diria? Resolveu partir para a ação porque essas questões demandavam menor urgência no momento. Resoluto, ordenou ao Demián Lukitch que preparasse uma amputação.
Enquanto a parteira se espantou e o encarou com ares de indignação, o enfermeiro engajou-se imediatamente, acionou o fogareiro e organizou os instrumentos.
(...)
O jovem médico vinha passando por situações de muita pressão desde que a menina foi internada. Tomou decisões que surpreenderam a equipe... E o surpreenderam também! Tanto é que em certas ocasiões nem ele mesmo reconhecia a própria voz.
Depois de uns quinze minutos da decisão sobre a amputação, percebeu-se em nova enrascada... Transpirava copiosamente e tinha dificuldade para ordenar a sequência dos procedimentos ao mesmo tempo que matutava sobre a persistência da vida no pequeno “semicadáver”.
Antes de iniciar a cirurgia propriamente dita, a movimentação ao redor ainda o levaram a várias reflexões... Observou a aplicação da injeção de cafeína e em pensamento questionou a necessidade de mais aquela substância nas veias da menina... Viu que Pelagueia Ivánovna secava o suor de sua testa com gaze, e que Anna Nikoláievna limpava as áreas de potencial corte com soro fisiológico.
(...)
Chegado o momento em que só ele podia agir, pegou a faca e instintivamente passou a imitar os movimentos que certa vez assistira numa demonstração de amputação na universidade. Fazia isso enquanto implorava aos céus que a garota não morresse durante a cirurgia... Que viesse a óbito depois de meia hora, quando já estivesse na enfermaria!
Deu início aos cortes levando em consideração o bom senso e a inevitável necessidade de dar prosseguimento à operação, pois não pretendia demorar-se muito exatamente para não acontecer de a menina morrer “sob o bisturi”.
Seu primeiro movimento foi o corte coxa com uma lâmina bem afiada... Então viu que “a pele se rompeu sem vazar uma gotícula de sangue”.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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