sábado, 19 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – dias chuvosos, pouco trabalho e prazer da leitura no solitário gabinete; urgência à meia-noite com a chegada de uma parturiente em “condições adversas”; novamente pressionado pelos próprios receios; a equipe passou a confiar mais no jovem doutor; “situação transversa”, primeira sondagem também da reação das experientes parteiras


As “anotações” dão conta de que os dias que se seguiram foram mais tranquilos para o jovem doutor que, aos poucos, acabou se acostumando à rotina... O ritmo de trabalho não era dos mais intensos também porque os camponeses continuavam em suas tarefas de espadelar o linho e, como os caminhos continuavam precários, poucos se dirigiam ao hospital. Normalmente o dia se passava e não mais do que cinco pessoas compareciam para consultas.
O tempo chuvoso tornava as noites agradáveis para o estudo. Essas ocasiões se tornaram comuns para ele... Seu principal prazer era poder ler até a exaustão sem ser incomodado. E era isso mesmo o que o rapaz fazia em seu confortável e bem servido gabinete.
(...)
Certa noite, enquanto se dedicava à leitura de “um compêndio de anatomia topográfica”, resolveu contemplar a agradável atmosfera que o cercava... Gostou do silêncio que era total e até de poder ouvir os guinchos dos ratos que se movimentavam atrás do armário da sala de jantar.
Um bom chá, o som da chuva no telhado e nas vidraças... O que mais o jovem doutor poderia querer? Só mesmo a boa cama para o merecido sono. Então se dirigiu para ela e mal se deitou percebeu-se sonhando com uma ocorrência das corriqueiras... “Viu” Anna Prokhorova, jovem de dezessete anos que vivia “na vila de Toropovo”, aflita e necessitada de extrair um dente... Na sequência Demián Lukitch “surgia com pinças brilhantes” esforçando-se para se expressar num “estilo mais elevado” ao falar “quão” em vez de “tão”.
Apenas um sonho, só isso, mas despertou de repente, sentindo-se puxado pelo braço. Em meio à escuridão, procurou atentar-se aos sons da noite e foi assim que pôde ouvir que chegavam à casa. Logo ouviu os passos que só podiam ser da cozinheira se dirigindo à porta e, na sequência, atravessando o gabinete para chegar ao quarto.
Do outro lado, Aksínia, que também era enfermeira, explicou que Anna Nikoláievna solicitava a presença do doutor com urgência no hospital... O caso é que haviam chegado com uma mulher desde Dultsevo para um parto de “condições adversas”. O jovem doutor procurou arrumar-se o mais rápido que pôde e até se atrapalhou por isso, ao mesmo tempo pensava que aquele podia ser o esperado caso grave que tanto o assustava só de imaginá-lo... Desde o começo tinha certeza de que entre os casos de gastrite e laringite apareceria um ou outro mais complicado.
(...)
Meia-noite... O sono desapareceu e ele pediu à mulher que avisasse que iria o quanto antes. De repente sentiu o corpo tremer ao pensar o que poderia haver de “adverso” no parto da mulher... Talvez uma “posição incorreta ou pouca dilatação”. Havia hipóteses mais assustadoras e eventualmente teria de recorrer ao fórceps. Eventualmente teria de encaminhá-la à cidade, mas pelo visto essa iniciativa provocaria críticas ao seu modo de proceder... Certamente esperavam que ele resolvesse o caso. Uma falha sua e se sentiria desonrado diante das parteiras.
Por um instante deixou de lado as conjecturas e entendeu que não era produtivo antecipar as preocupações. Era preciso ver a mulher o quanto antes e analisar sua condição, por isso vestiu o casaco e avançou para o hospital sob a chuva...
Observou que junto à porta principal estava o veículo típico para o transporte de cargas (uma telega), mas que certamente havia sido utilizado para remover a mulher.
Ao chegar diante da porta principal notou uma pessoa agitada junto ao cavalo e perguntou-lhe se ela havia trazido a parturiente... Uma voz feminina respondeu afirmativamente e ele apressou-se para a agitação do pequeno corredor que levava à maternidade. Aksínia passou com uma bacia dirigindo-se para a sala onde a paciente emitia fracos gemidos.
As duas parteiras já se ocupavam da jovem... Anna Nikoláievna acabara de aferir a temperatura e estava providenciando a assepsia, Pelagueia Ivánovna cuidava da arrumação dos lençóis que seriam utilizados durante os procedimentos... O enfermeiro Demián Lukitch também estava de prontidão. O doutor notou que a equipe se animou assim que o viu chegar enquanto a parturiente abria os olhos e soltava mais um gemido angustiante.
Anna Nikoláievna explicou que o caso era de “situação transversa”. O doutor fez uma expressão preocupada e disse que precisava verificar. Aksínia foi convocada para ajudar na limpeza das mãos do cirurgião e conforme ajeitava escova e sabão fazia perguntas a respeito da paciente, querendo detalhes das suas origens e há quanto tempo havia sido transferida para Múrievo.
(...)
Assim que o jovem doutor iniciou o exame, apalpando a barriga da parturiente, ela soltou um gemido de agonia e agarrou-se aos lençóis como que a torcê-los. Ele procurou acalmá-la ao mesmo tempo em que refletia a respeito da informação dada pela experiente Anna Nikoláievna. Concluiu que seu exame pouco acrescentaria ao já constatado pela parteira. O caso é que não sabia exatamente como deveria proceder em relação à “situação transversa”.
Sem poder definir os próximos passos, continuou a apalpar a barriga em pontos diversos... Fez isso enquanto observava as reações de aprovação das duas parteiras. Assim teve certeza de que seus movimentos estavam “seguros e corretos” e que eles disfarçavam sua insegurança.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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