sábado, 5 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – exercer a medicina no hospital de Múrievo em substituição ao competente doutor Leopold seria enorme desafio; noite de diálogo com a consciência, os temores e o cansaço; o compêndio como manual indispensável; hérnia estrangulada, um horror para o novato; é preciso descansar

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_2.html antes de ler esta postagem:

Como vimos, o primeiro dia em Múrievo foi dos mais cansativos. Mas ao anoitecer, o jovem doutor parecia ter conseguido o merecido sossego. O vigia Egóritch e sua esposa Aksínia providenciaram o melhor que podiam para ele...
Ele gostou de tudo o que viu. As instalações, instrumentos e equipamentos eram muito bons. Soube que seu antecessor, o doutor Leopold Leopôldovitch, havia cuidado exemplarmente da unidade e dos pacientes do hospital. Não era por acaso que todos o admiravam.
O jovem médico tinha consciência de suas limitações e a manifestada consideração pelos serviços prestados por Leopôldovitch certamente o incomodaram. Mas sua maior preocupação era mesmo em relação à própria mocidade. As pessoas enxergavam isso, pois estava estampado em sua aparência. Em suas conjecturas imaginava que elas só podiam associar a constatação à falta de experiência.
(...)
A noite avançava e o rapaz perambulava pelo quarto enquanto refletia sobre sua condição... Por fim admitiu que não devia desculpas a ninguém, pois havia sido muito bom aluno e de exemplar formação. Lembrou que antes de seguir para Múrievo dissera aos superiores que podia assumir como adjunto, e estes lhe responderam que não precisava se preocupar, pois “se sentiria em casa” logo que assumisse o posto médico.
Seria difícil se sentir à vontade... Poderiam aparecer com uma hérnia! E como é que seus pacientes se sentiriam após cada cirurgia? Teria de lidar com muitos procedimentos, então arrepiou-se ao sentenciar para si mesmo que não possuía a prática recomendada...
“Apêndice supurada, crupe diftérico em crianças, traqueotomia, partos de risco devido à posição anormal dos fetos”! As situações cotidianas de um hospital chegavam-lhe aos pensamentos como ocorrências assustadoras! Seria o caso de renunciar? Podiam conseguir outro médico do nível de Leopold Leopôldovitch.
Esses pensamentos o entristeceram e na penumbra do quarto contemplou o próprio rosto iluminado pela lamparina e refletido na vidraça da janela. Antes de se sentar à mesa, comparou-se ao “Falso Dimitri”*.

                   *a tradutora esclarece ter sido “um monge chamado Grigóri Otrepiev, conhecido por se passar por filho de Ivan IV – o ‘Terrível’ – e que, por isso, tem o nome associado às tramas dos impostores”.

(...)
O jovem doutor se torturou com suas assombrações por duas horas... Aos poucos se acalmou e pôs-se a meditar a respeito de alguns planos.  Inicialmente levou em consideração a diminuição das consultas e concluiu que isso se devia ao intenso trabalho... Era tempo de “malhar o linho”, o que mantinha os camponeses ocupados durante todo o dia nas aldeias. Além disso, as estradas estavam muito prejudicadas. Concluiu que ninguém se arriscaria ir ao hospital para tratar de um resfriado, mas que certamente apareceriam se tivessem um problema de hérnia.
Essas reflexões ocorriam como que num diálogo com a própria consciência. De fato, “a voz da consciência” não tinha nada de tola ou ingênua, e exatamente por isso o rapaz pediu para ela se calar... Sugeriu que podia ser que, em vez de hérnia, apareceriam com “uma neurastenia”, algo bem mais simples de ser tratado. A “voz da consciência”, ou a dos fantasmas que o assombravam com o medo, retrucou que “quem fala sustenta”. Neste ponto, o jovem doutor considerou que deveria manter o “guia” ao seu alcance. Poderia mantê-lo aberto sobre o prontuário... Poderia voltar o olhar para os textos e refletir enquanto lavasse as mãos... Depois aviaria receitas úteis e simples, como “ácido salicílico três vezes ao dia, 0,5 por dose”.
Neste ponto a “voz da consciência” interveio sarcasticamente e sugerindo que poderia “receitar bicarbonato de sódio”. O rapaz irritou-se querendo saber “o que o bicarbonato de sódio” tinha a ver com o raciocínio que fizera anteriormente. De sua parte, sabia que podia receitar “até infusão de ipecacuanha, em 180 ml ou 200”.
Sem dúvida a conversa beirava o absurdo, mas para o jovem doutor havia o incômodo da insegurança e da falta de experiência ao começar a lidar com os primeiros pacientes. Não foi por acaso que se aproximou mais da lamparina e manipulou o manual para conferir “ipecacuanha”, propriedades e aplicações. Leu que havia certa “insipina” que não era nada mais nada menos do que “sulfato de éter de ácido diglicólico de quinina”. Leu que não tinha “gosto de quinino”.
A consulta ao manual resultara em mais nervosismo, já que continuava sem saber para que aquilo servia e como teria de ser receitado. Não conseguiu saber sequer se o produto era um pó! A “consciência” voltou a perturbá-lo dizendo que “insipina é insipina” e que era preciso saber como lidaria com a hérnia no final das contas.
(...)
A “voz da consciência” tagarelava provocativamente porque era uma expressão do medo e da insegurança que o jovem doutor sentia. Sem muita inspiração, ele respondeu que recomendaria “um banho de banheira” ao paciente com hérnia. Depois disso “tentaria colocá-la no lugar”. Ainda mais irritante, o interlocutor invisível sentenciou que “hérnia estrangulada deve ser cortada”.
Em seu íntimo o rapaz conhecia o tipo de desafio que o aguardava... Apavorou-se com a constatação de que não teria como escapar dos casos que chegassem a ele. Sem poder decidir a respeito, quase caiu em prantos. Então voltou o olhar para a escuridão que podia contemplar pela vidraça e pediu em prece que aparecessem com qualquer caso, menos com “uma hérnia estrangulada”.
As últimas palavras que imaginou ouvir de sua “consciência/medo/cansaço” foram a sugestão para que se deitasse e dormisse... Ele podia conferir que não havia nenhuma hérnia na escuridão revelada pela vidraça. Devia descansar e aguardar a clareza do dia seguinte. Devia largar o compêndio, pois precisava dormir.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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