terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – o primeiro caso do jovem Bulgákov em Nikólskoie foi um complicado parto na noite de sua chegada; em Múrievo o jovem médico atendeu a uma emergência após acidente da filha de um pobre camponês na máquina de espadelar o linho; desespero do viúvo pela salvação da bela criança; quadro clínico estarrecedor

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_5.html antes de ler esta postagem:

Neste ponto é importante retomarmos a ideia de que a narrativa de Bulgákov em “anotações de um Jovem Médico” se aproxima em muito da realidade vivida por ele. Vimos que em seu prefácio, a tradutora Érika Batista cita trechos do depoimento de Tatiana Lappa (primeira esposa do autor) à “doutora em Filologia e presidente da Fundação Bulgákov”, Marietta Tchudakova. De acordo com Tatiana Lappa, o primeiro caso que o marido teve de atender surgiu logo na primeira noite e não podia ser menos tenso do que ele temera, pois se tratava de um parto complicadíssimo.
Este primeiro caso provavelmente está em “A estreia obstétrica”, que é o segundo conto do livro. Mas até aqui, neste “A toalha com um galo” acompanhamos o jovem doutor tomado por temores em relação à própria insegurança para lidar com casos mais graves que pudessem aparecer. Isso muito o incomodou em boa parte da noite de sua chegada, mas veremos que o primeiro caso que o autor resolveu contar não foi aquele revelado por sua primeira esposa.
(...)
Depois da narração a respeito da chegada à instalação hospitalar de Múrievo, apresentações, inspeção dos equipamentos e da primeira noite na casa destinada ao doutor, o jovem médico redigiu anotações sobre um caso que teve de atender.
Aconteceu que um camponês desesperado invadiu sua sala... Aksínia deixou os afazeres da cozinha e o seguiu logo que ouviu o barulho da porta. O homem trajava roupas simples e gastas, mas o que mais chamava a atenção eram seus olhos arregalados e tresloucados. Assim que se viu diante do médico, atirou-se de joelhos no piso... O rapaz o pegou pela manga da camisa arruinada pelo trabalho extenuante e quis saber o que o trazia ao hospital.
O camponês parecia assombrado e não conseguia concluir as frases que começava. Mas era possível entender que alguém muito próximo a ele havia sofrido um grave acidente. Estava inconformado e passou a gritar perguntas sobre o motivo de Deus o castigar com tamanha infelicidade. Evidentemente o jovem médico o ouvia sem conseguir detectar o problema, então teve de gritar para que o outro percebesse que devia se explicar melhor, pois só dessa maneira é que podia fazer algo para ajudá-lo.
Em vez de tratar diretamente do caso, o pobre homem passou a implorar pela intercessão do médico dizendo que estava disposto a pagar a quantia que lhe pedisse... Podia trazer-lhe comida ou qualquer outra coisa desde que “não a deixasse morrer”. Emendou que, ainda que “ela ficasse aleijada”, faria de tudo para sustentá-la.
O jovem doutor olhou para Aksínia e logo entendeu que de algum modo ela sabia o que estava acontecendo. Ele não suportou a falta de clareza do camponês e vociferou para que falasse de uma vez qual era o caso que trazia. Então, quase que a sussurrar, o homem disse “caiu no espadelador”. O médico não tinha a menor ideia do que era “espadelador”, então a esposa do vigia Egóritch interveio para explicar que era a máquina que servia para “espadelar o linho”.
Mesmo sem compreender totalmente o que havia ocorrido, o jovem médico concluiu que o caso era grave e que de certo modo seus temores da noite passada podiam se confirmar. Perguntou ao camponês quem havia sofrido o acidente e com voz apagada este lhe respondeu que havia sido sua filhinha, depois se atirou novamente ao chão e implorou aos gritos que a socorresse.
(...)
Na sequência das anotações do jovem doutor temos o relato sobre sua atuação no primeiro caso a que teve de atender...
Graças a um lampião havia iluminação na sala, e assim que viu a menina sobre a mesa de operações percebeu que o caso em nada tinha a ver com hérnia. A menina tinha um belo rosto e longos cabelos “claros e meio arruivados” entrelaçados. Sua pobre veste estava rasgada e ensanguentada.
O silêncio foi interrompido pelos gritos do pai que aguardava do lado de fora. O barulho parecia indicar que o homem batia a cabeça contra a parede. O jovem médico pensou que faltava bem pouco para o camponês enlouquecer de vez e que as enfermeiras podiam estar dando-lhe “uma bebida para reanimá-lo”. Voltando a atenção para o rosto da menina, concluiu que sua beleza só podia ser uma herança da mãe. Pensava sobre isso e deixou escapar sua dúvida a respeito de suposta viuvez do pai... Pelagueia Ivánovna confirmou que sim.
O enfermeiro Demián Lukitch adiantou-se para rasgar a saia da paciente, e isso possibilitou uma visão mais detalhada do estrago à perna esquerda... Nos dizeres do jovem doutor, ela praticamente “não existia”, já que...

                   Desde o “joelho esmigalhado, jaziam farrapos sangrentos, músculos vermelhos amassados, e brancos ossos esmagados (...) agudos, em todas as direções”.
                   E quanto à direita, “estava fraturada na parte inferior de tal modo que as pontas de ambos os ossos saltavam para fora, atravessando a pele, O pé dela jazia sem vida, virado de lado, como que separado do resto”.

O quadro era tão grave que Demián Lukitch apenas pronunciou um “é”, talvez querendo dizer que nada poderia ser feito para salvar a menina.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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