Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_5.html antes
de ler esta postagem:
Neste ponto é importante retomarmos a ideia de
que a narrativa de Bulgákov em “anotações de um Jovem Médico” se aproxima em
muito da realidade vivida por ele. Vimos que em seu prefácio, a tradutora Érika
Batista cita trechos do depoimento de Tatiana Lappa (primeira esposa do autor)
à “doutora em Filologia e presidente da Fundação Bulgákov”, Marietta Tchudakova.
De acordo com Tatiana Lappa, o primeiro caso que o marido teve de atender
surgiu logo na primeira noite e não podia ser menos tenso do que ele temera,
pois se tratava de um parto complicadíssimo.
Este primeiro caso provavelmente está em
“A estreia obstétrica”, que é o segundo conto do livro. Mas até aqui, neste “A
toalha com um galo” acompanhamos o jovem doutor tomado por temores em relação à
própria insegurança para lidar com casos mais graves que pudessem aparecer.
Isso muito o incomodou em boa parte da noite de sua chegada, mas veremos que o
primeiro caso que o autor resolveu contar não foi aquele revelado por sua
primeira esposa.
(...)
Depois da narração a respeito da chegada à instalação hospitalar de
Múrievo, apresentações, inspeção dos equipamentos e da primeira noite na casa
destinada ao doutor, o jovem médico redigiu anotações sobre um caso que teve de
atender.
Aconteceu que um camponês
desesperado invadiu sua sala... Aksínia deixou os afazeres da cozinha e o
seguiu logo que ouviu o barulho da porta. O homem trajava roupas simples e
gastas, mas o que mais chamava a atenção eram seus olhos arregalados e
tresloucados. Assim que se viu diante do médico, atirou-se de joelhos no
piso... O rapaz o pegou pela manga da camisa arruinada pelo trabalho extenuante
e quis saber o que o trazia ao hospital.
O camponês parecia assombrado
e não conseguia concluir as frases que começava. Mas era possível entender que
alguém muito próximo a ele havia sofrido um grave acidente. Estava inconformado
e passou a gritar perguntas sobre o motivo de Deus o castigar com tamanha infelicidade.
Evidentemente o jovem médico o ouvia sem conseguir detectar o problema, então
teve de gritar para que o outro percebesse que devia se explicar melhor, pois
só dessa maneira é que podia fazer algo para ajudá-lo.
Em vez de tratar
diretamente do caso, o pobre homem passou a implorar pela intercessão do médico
dizendo que estava disposto a pagar a quantia que lhe pedisse... Podia
trazer-lhe comida ou qualquer outra coisa desde que “não a deixasse morrer”.
Emendou que, ainda que “ela ficasse aleijada”, faria de tudo para sustentá-la.
O jovem doutor olhou para
Aksínia e logo entendeu que de algum modo ela sabia o que estava acontecendo.
Ele não suportou a falta de clareza do camponês e vociferou para que falasse de
uma vez qual era o caso que trazia. Então, quase que a sussurrar, o homem disse
“caiu no espadelador”. O médico não tinha a menor ideia do que era
“espadelador”, então a esposa do vigia Egóritch interveio para explicar que era
a máquina que servia para “espadelar o linho”.
Mesmo sem compreender
totalmente o que havia ocorrido, o jovem médico concluiu que o caso era grave e
que de certo modo seus temores da noite passada podiam se confirmar. Perguntou
ao camponês quem havia sofrido o acidente e com voz apagada este lhe respondeu
que havia sido sua filhinha, depois se atirou novamente ao chão e implorou aos
gritos que a socorresse.
(...)
Na sequência das anotações do jovem doutor temos o relato sobre sua
atuação no primeiro caso a que teve de atender...
Graças a um lampião havia iluminação na sala, e assim que viu a menina
sobre a mesa de operações percebeu que o caso em nada tinha a ver com hérnia. A
menina tinha um belo rosto e longos cabelos “claros e meio arruivados”
entrelaçados. Sua pobre veste estava rasgada e ensanguentada.
O silêncio foi interrompido pelos gritos do pai
que aguardava do lado de fora. O barulho parecia indicar que o homem batia a
cabeça contra a parede. O jovem médico pensou que faltava bem pouco para o
camponês enlouquecer de vez e que as enfermeiras podiam estar dando-lhe “uma
bebida para reanimá-lo”. Voltando a atenção para o rosto da menina, concluiu
que sua beleza só podia ser uma herança da mãe. Pensava sobre isso e deixou
escapar sua dúvida a respeito de suposta viuvez do pai... Pelagueia Ivánovna
confirmou que sim.
O enfermeiro Demián Lukitch
adiantou-se para rasgar a saia da paciente, e isso possibilitou uma visão mais
detalhada do estrago à perna esquerda... Nos dizeres do jovem doutor, ela
praticamente “não existia”, já que...
Desde
o “joelho esmigalhado, jaziam farrapos sangrentos, músculos vermelhos
amassados, e brancos ossos esmagados (...) agudos, em todas as direções”.
E quanto à direita, “estava fraturada
na parte inferior de tal modo que as pontas de ambos os ossos saltavam para
fora, atravessando a pele, O pé dela jazia sem vida, virado de lado, como que
separado do resto”.
O
quadro era tão grave que Demián Lukitch apenas pronunciou um “é”, talvez
querendo dizer que nada poderia ser feito para salvar a menina.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_9.html
Leia: “Anotações
de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um
abraço,
Prof.Gilberto