quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – complexado com a pouca idade e estabelecendo um padrão de postura mais séria; necessidade de se restabelecer junto ao fogo; conhecendo o pessoal com o qual trabalharia mais de perto; inspecionando as dependências da unidade hospitalar; instrumentos e aparelhos modernos, ampla enfermaria, bem abastecida farmácia e bela coleção de livros de medicina, legados do doutor Leopold Leopôldovitch; sentindo-se em casa e sem motivos para maiores lamentações

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras.html antes de ler esta postagem:

De tal modo o jovem doutor se sentia incomodado com o fato de as pessoas mostrarem-se surpresas com sua pouca idade que cogitava arranjar uns óculos para que pudesse impor respeito. Pelo menos era isso o que pensava, já que muitas vezes ouvia que esperavam alguém mais velho e que, antes de ser apresentado, o imaginavam ainda estudante universitário.
A ideia não podia avançar principalmente porque sua visão era saudável e não apresentava o cansaço típico dos mais experientes... Assim, tratou de adotar atitudes que inspirassem respeito, como falar pausadamente e com gravidade ou não correr pelos ambientes.
O caso é que, pelo menos de imediato não poderia cumprir o as normas comportamentais que havia definido. Estava muito cansado e sentindo dores terríveis por conta do enrijecimento dos ossos e da pele. Por isso seguiu para a cozinha e posicionou-se junto ao fogo... Ele mesmo arrancou as botas e as pendurou próximas ao fogão, bem perto de um galo depenado e pronto para ir para a panela.
(...)
Mesmo extenuado pelo rigor da viagem e do frio extremado, o jovem doutor havia conseguido cumprir o que se esperava dele assim que chegasse... Apresentou-se à equipe e ficou sabendo dos nomes dos que o auxiliariam mais de perto: o enfermeiro era certo Demián Lukitch; as parteiras chamavam-se Pelagueia Ivánovna e Anna Nikoláievna; Aksínia, esposa do vigia Egóritch, foi apresentada como cozinheira do doutor e era quem estava preparando o galo para a sua primeira refeição em Múrievo.
Ele visitou as instalações e aprovou o que viu, notadamente os instrumentos e equipamentos, que eram muitos. Admirou-se ao verificar que alguns ainda não tinham sido usados e sentiu-se envergonhado por não ter a menor ideia de como eram utilizados e em quais circunstâncias. Resolveu comentar que a instalação possuía um “equipamento decente”.
O enfermeiro Lukitch se adiantou para explicar que tudo se devia ao empenho do médico que o precedera, o doutor Leopold Leopôldovitch*. Uma personalidade exemplar, que “operava literalmente desde a manhã até a noite”. Essa informação provocou acanhamento e suor frio nas têmporas do jovem médico, que se pôs a contemplar os armários limpos e espelhados.
Percorreram as instalações de enfermaria... O recém-formado calculou que elas podiam acolher uns quarenta pacientes sem qualquer aglomeração. Mais uma vez o enfermeiro se antecipou para se referir ao antecessor e disse que, na época do doutor Leopold, não era raro o local abrigar até cinquenta internados. Já a experiente Anna Nikoláievna emendou que o recém-chegado parecia muito jovem, tão jovem que mais parecia um estudante.
O jovem doutor ficou sem jeito porque certamente lhe veio à mente o complexo em relação à pouca idade, e ao tentar responder gaguejou um pouco até concordar que parecia mesmo bem moço.

                   *de acordo com Érika Batista, de fato o antecessor do jovem Bulgákov no hospital em Nikólskoie foi mesmo o doutor Leopold Leopôldovitch, que o equipou com o que havia de melhor naquele tempo, e isso revela a aproximação da narrativa com a realidade por ele vivenciada.

Também a farmácia era bem equipada e abastecida. Possuía duas salas em cujas prateleiras encontravam-se frascos com todas as ervas de que se necessitasse para as diversas manipulações... Um breve passar de olhos foi suficiente para que o jovem doutor encontrasse materiais que ele desconhecia, todos “estrangeiros patenteados”.
Dessa vez foi Pelagueia Ivánovna que se manifestou orgulhosamente ao declarar que o doutor Leopold havia encomendado tudo o que se via ali. O jovem apenas concordou em pensamento que seu antecessor era mesmo genial e que só podia nutrir profundo respeito por aquele desconhecido.
(...)
Depois dessa inspeção, ele foi definitivamente instalado na casa de dois pisos... Ali pôde aproveitar o calor de sua cozinha e alimentar-se do galo preparado pela esposa de Egóritch... Este providenciou um acolchoado para o colchão de palha para a cama do novo médico e o cobriu com um lençol limpo.
A casa possuía um amplo gabinete dotado de armário com farta bibliografia médica... Livros em russo e alemão, sobre cirurgia e terapias diversas... Mais de cinquenta exemplares, e a maioria encadernada com couro. Certamente outra realização do excelente Leopold Leopôldovitch.
Por fim veio a noite e o jovem doutor se sentiu mais tranquilo e à vontade na casa a ele destinada... Em suas reflexões repassou toda trajetória desde que se formara até assumir o posto no hospital ao qual havia sido destinado... É bem verdade que as pessoas podiam vê-lo como jovem demais e inexperiente para comandar o lugar, mas não podia se culpar por nada. Tinha o diploma em mãos e tirara muitas notas máximas em diversas disciplinas do curso em Kiev.
Lembrou-se que havia dito aos superiores que gostaria de trabalhar como “médico adjunto”, mas garantiram que ele “se sentiria em casa” na chefia do hospital do pequeno povoado. Então ali estava ele.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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