Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras.html antes
de ler esta postagem:
De tal modo o jovem doutor se sentia incomodado
com o fato de as pessoas mostrarem-se surpresas com sua pouca idade que
cogitava arranjar uns óculos para que pudesse impor respeito. Pelo menos era
isso o que pensava, já que muitas vezes ouvia que esperavam alguém mais velho e
que, antes de ser apresentado, o imaginavam ainda estudante universitário.
A ideia não podia
avançar principalmente porque sua visão era saudável e não apresentava o cansaço
típico dos mais experientes... Assim, tratou de adotar atitudes que inspirassem
respeito, como falar pausadamente e com gravidade ou não correr pelos
ambientes.
O caso é que, pelo menos de imediato não poderia cumprir o as normas
comportamentais que havia definido. Estava muito cansado e sentindo dores
terríveis por conta do enrijecimento dos ossos e da pele. Por isso seguiu para
a cozinha e posicionou-se junto ao fogo... Ele mesmo arrancou as botas e as
pendurou próximas ao fogão, bem perto de um galo depenado e pronto para ir para
a panela.
(...)
Mesmo
extenuado pelo rigor da viagem e do frio extremado, o jovem doutor havia conseguido
cumprir o que se esperava dele assim que chegasse... Apresentou-se à equipe e
ficou sabendo dos nomes dos que o auxiliariam mais de perto: o enfermeiro era
certo Demián Lukitch; as parteiras chamavam-se Pelagueia Ivánovna e Anna
Nikoláievna; Aksínia, esposa do vigia Egóritch, foi apresentada como cozinheira
do doutor e era quem estava preparando o galo para a sua primeira refeição em
Múrievo.
Ele visitou as
instalações e aprovou o que viu, notadamente os instrumentos e equipamentos,
que eram muitos. Admirou-se ao verificar que alguns ainda não tinham sido
usados e sentiu-se envergonhado por não ter a menor ideia de como eram
utilizados e em quais circunstâncias. Resolveu comentar que a instalação
possuía um “equipamento decente”.
O
enfermeiro Lukitch se adiantou para explicar que tudo se devia ao empenho do
médico que o precedera, o doutor Leopold Leopôldovitch*. Uma personalidade
exemplar, que “operava literalmente desde a manhã até a noite”. Essa informação
provocou acanhamento e suor frio nas têmporas do jovem médico, que se pôs a
contemplar os armários limpos e espelhados.
Percorreram as
instalações de enfermaria... O recém-formado calculou que elas podiam acolher
uns quarenta pacientes sem qualquer aglomeração. Mais uma vez o enfermeiro se
antecipou para se referir ao antecessor e disse que, na época do doutor
Leopold, não era raro o local abrigar até cinquenta internados. Já a experiente
Anna Nikoláievna emendou que o recém-chegado parecia muito jovem, tão jovem que
mais parecia um estudante.
O jovem doutor ficou
sem jeito porque certamente lhe veio à mente o complexo em relação à pouca
idade, e ao tentar responder gaguejou um pouco até concordar que parecia mesmo
bem moço.
*de acordo com Érika
Batista, de fato o antecessor do jovem Bulgákov no hospital em Nikólskoie foi
mesmo o doutor Leopold Leopôldovitch, que o equipou com o que havia de melhor
naquele tempo, e isso revela a aproximação da narrativa com a realidade por ele
vivenciada.
Também a farmácia era bem equipada e abastecida. Possuía duas salas em
cujas prateleiras encontravam-se frascos com todas as ervas de que se
necessitasse para as diversas manipulações... Um breve passar de olhos foi
suficiente para que o jovem doutor encontrasse materiais que ele desconhecia,
todos “estrangeiros patenteados”.
Dessa vez foi Pelagueia Ivánovna que se
manifestou orgulhosamente ao declarar que o doutor Leopold havia encomendado
tudo o que se via ali. O jovem apenas concordou em pensamento que seu
antecessor era mesmo genial e que só podia nutrir profundo respeito por aquele
desconhecido.
(...)
Depois dessa
inspeção, ele foi definitivamente instalado na casa de dois pisos... Ali pôde aproveitar
o calor de sua cozinha e alimentar-se do galo preparado pela esposa de
Egóritch... Este providenciou um acolchoado para o colchão de palha para a cama
do novo médico e o cobriu com um lençol limpo.
A casa possuía um amplo gabinete dotado de armário com farta
bibliografia médica... Livros em russo e alemão, sobre cirurgia e terapias
diversas... Mais de cinquenta exemplares, e a maioria encadernada com couro. Certamente
outra realização do excelente Leopold Leopôldovitch.
Por
fim veio a noite e o jovem doutor se sentiu mais tranquilo e à vontade na casa
a ele destinada... Em suas reflexões repassou toda trajetória desde que se
formara até assumir o posto no hospital ao qual havia sido destinado... É bem
verdade que as pessoas podiam vê-lo como jovem demais e inexperiente para
comandar o lugar, mas não podia se culpar por nada. Tinha o diploma em mãos e tirara
muitas notas máximas em diversas disciplinas do curso em Kiev.
Lembrou-se
que havia dito aos superiores que gostaria de trabalhar como “médico adjunto”,
mas garantiram que ele “se sentiria em casa” na chefia do hospital do pequeno
povoado. Então ali estava ele.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2022/02/anotacoes-de-um-jovem-medico-e-outras_5.html
Leia: “Anotações
de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um
abraço,
Prof.Gilberto