quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

“Anotações de um Jovem Médico – e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov – rápida leitura de trechos do manual Döderlein deixou mais dúvidas e fomentou temores; a protelação do caso colocava em risco a vida da parturiente; um importante aprendizado com Anna Nikoláievna enquanto se preparam para a “versão podálica”; depois do entorpecimento com clorofórmio, o parto


Inicialmente o jovem doutor sentiu-se aliviado por ter saído da sala de operações sem despertar qualquer desconfiança da parte de seus auxiliares... No gabinete pôde acessar o manual Döderlein para obter as informações necessárias sobre como resolver a “situação transversal”. No entanto, conforme folheou o livro apurou uma série de advertências que o deixaram ainda mais apreensivo. A operação era de risco para a parturiente principalmente por causa da possibilidade de provocar o “rompimento espontâneo do útero”.
A rápida leitura não deixava dúvidas a respeito da vulnerabilidade da intervenção... A “versão podálica” estava praticamente descartada no caso de o exame de toque do útero apontar “falta de espaço” em decorrência (também) de contrações e isso dificultar “o alcance da perna”.
A informação era importante, todavia trouxe mais ansiedade do que convicções ao rapaz. Tinha dúvidas até a respeito do exame e de como avaliar o grau de dificuldade em relação à “falta de espaço”. Desse modo não saberia em que medida teria de desistir da operação... Para piorar, a pobre mulher seria anestesiada em breve e ele devia apresentar uma solução para o delicado caso.
Voltou a atenção para o texto e conferiu novos alertas: “é absolutamente proibido tentar alcançar as pernas pelas costas do bebê”; não se podia pegar o bebê pelas coxas, já que isso provocaria “a virada axial do feto” e consequentemente “um grave encaixamento do bebê na bacia” com dramáticas consequências.
(...)
O capítulo a respeito da “versão podálica” continha essas advertências impressionantes. Associá-las às consequências de uma intervenção malsucedida era de apavorar... O marido da parturiente poderia ficar viúvo! Como reagiria? Mais do que nunca precisava saber de que modo faria o adequado exame interno.
Buscou as informações avançando na leitura, todavia as frases se sucediam umas mais apavorantes do que as outras: “em vista do enorme perigo de ruptura”; “as versões interna e combinada devem ser tratadas como operações obstétricas mais perigosas para a mãe”; “o perigo aumenta a cada hora de protelação”.
Neste ponto o jovem doutor concluiu que a consulta ao manual o deixara mais confuso e até mais inseguro. Além do mais não tinha a menor ideia do tipo de versão que devia ser operar: “combinada, não combinada, direta, indireta...”.
Olhou para o relógio e percebeu que já estava ali há quase quinze minutos. Lembrou que não podia protelar mais, pois com isso o perigo aumentava a cada instante e na situação em que se encontrava os minutos pareciam avançar mais rapidamente. Percebeu-se sentado na poltrona, atirou o manual a um canto qualquer e correu para o hospital.
(...)
Tudo havia sido encaminhado... O enfermeiro Demián Lukitch estava junto à mesa de operações e pronto para aplicar o clorofórmio à máscara que seria colocada sobre a parturiente. A mulher gemia sem parar... Logo que entrou, o jovem doutor ouviu Pelagueia Ivánovna dizer-lhe que “o doutor já vai te ajudar”, mas a outra só respondia que não aguentaria e que não tinha forças.
Ivánovna a consolou referindo-se ao clorofórmio, uma “coisinha que lhe seria dada para cheirar”, garantindo que ela nem ouviria nada durante a operação. Enquanto isso, o jovem doutor e Anna Nikoláievna lavavam as mãos e braços em abundante água despejada pelas torneiras... A parteira aproveitou para contar-lhe a respeito de como o doutor Leopold “fazia versões”. Ele a ouviu atentamente sem emitir qualquer opinião dando a entender que conhecia os procedimentos... Em seu íntimo sabia que aqueles poucos minutos com a assistente lhe haviam sido mais valiosos do que todos os livros que havia estudado para os muitos exames dos quais saíra aprovado com menção “excelente”, e exatamente na matéria em questão.
Na sequência o jovem doutor fez a secagem das mãos utilizando a gaze esterilizada, com a certeza de que já tinha um plano de ação e certo de que não devia se preocupar com antecipações a respeito de “versão combinada ou não combinada”. O que contava no momento era o exame interno ao mesmo tempo em que devia manter a outra mão auxiliando externamente a “versão podálica”.
Definitivamente os livros não o podiam auxiliar porque se tratava de uma questão prática. O senso médico lhe seria valioso e, com cautela e persistência, tudo se resolveria... Era uma questão de ajeitar a perninha do bebê para extraí-lo com segurança.
Convenceu-se de que não poderia vacilar. Em vez disso, atuaria com toda calma e atenção. Resoluto, passou iodo nos dedos e deu ordem para que o enfermeiro anestesiasse a paciente. Assim que as gotas do líquido transparente foram aplicadas à máscara, a mulher gritou e se agitou na mesa. Mas Pelaguéia Ivánovna conseguiu manter suas mãos imobilizadas e orientou os demais a tomarem posições ao seu redor até que ela estivesse completamente anestesiada.
Por fim aquietou-se... A parteira conferiu a pulsação... Normal... Lukitch levantou uma das pálpebras da parturiente... Ela já dormia.
Leia: “Anotações de um Jovem Médico e outras narrativas”. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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