Sem Medo prosseguiu dizendo que deixou o Seminário aos dezesseis anos depois de agredir fisicamente a um padre de convicções racistas. Terminou expulso após ter surrado o tipo... Então passou a pensar que não teria outro fim a não ser o Inferno.
Refletia sobre seus atos passados e só enxergava crimes e “prazeres ignóbeis”. O sentimento de culpa o perseguia de tal modo que o sufocava... O único remédio foi se convencer de que o Inferno definitivamente não existe.
Eliminou de seus pensamentos a sua maior tormenta... E fazendo isso também eliminou Deus de suas crenças. Ao Comissário disse em tom de ensinamento que os inimigos devem ser enfrentados e destruídos, pois assim encontramos a paz interior de que tanto necessitamos.
(...)
O
Comissário disse que não via relação entre o que havia dito aos trabalhadores e
toda aquela falação do Comandante... Também Sem Medo já nem se lembrava o
motivo de ter começado a falar de seus tempos de seminarista... Mas acrescentou
que ao ouvi-lo falar de “promessas de liberdade” lembrou-se automaticamente do
Seminário.
Os homens dormiram...
O Comissário ainda demorou-se um pouco mais a refletir sobre as coisas que o
Comandante havia lhe contado.
(...)
Pela
manhã, “depois do mata-bicho”, libertaram os trabalhadores e devolveram-lhes
seus pertences.
Mas aconteceu que não
conseguiram encontrar uma nota de cem escudos que pertencia ao mecânico e que
ficara sob a guarda de Ekuikui. Revistaram tudo o que era de Ekuikui (bolsos,
roupa, sacador...) e nada!
O guerrilheiro ficou
bem decepcionado e até chorou... Disse que esteve para entregar o dinheiro ao
Comissário à noite, mas o oficial respondera que não havia necessidade e que
ele mesmo podia devolver ao trabalhador no dia seguinte.
O caso é que Ekuikui
garantiu que alguém roubou o dinheiro durante a noite. De sua parte, jamais
roubaria alguém do povo! Sabia muito bem que aquilo ia contra tudo o que o
movimento de libertação defendia.
O mecânico pôs-se a
dizer que não havia nenhum problema, pois a quantia era de pouco valor... O que
mais desejava era a liberdade, e ele estava percebendo que a falta do dinheiro atrasava
tudo.
Então aconteceu que os guerrilheiros se apartaram dos trabalhadores
dando a entender que seguiriam para o Congo.
(...)
Depois de mais ou menos um quilômetro de caminhada, o Comandante ordenou
que parassem. Decidiu que deveriam fazer uma reunião a respeito da emboscada
mais atrás no caminho... Era isso mesmo. O trabalhadores diriam aos tugas que
os guerrilheiros haviam seguido para o Congo. Convictos de que a informação era
procedente, não esperariam encontrá-los na estrada.
Sem Medo explicou que teriam de voltar um bom
trajeto. E que isso implicaria em mais tempo afastados da Base e com pouco
alimento. Era um sacrifício, mas os camaradas sentiram que valia a pena e foi
por isso que todos aprovaram a estratégia.
Sem Medo gostou de
ver a reação dos rapazes e explicou que deviam deixar que os trabalhadores
ganhassem terreno em seu retorno... Enquanto isso, o grupamento poderia
resolver o caso dos cem escudos desaparecidos.
(...)
O Comandante fez questão de deixar claro que o caso era sério e a
situação prejudicava em tudo o que haviam dito aos trabalhadores. Eles bem
poderiam pensar que, de fato, o movimento de libertação era formado por
bandidos que viviam de roubar a gente do povo.
O
que poderia dizer a respeito de quem havia se apropriado do dinheiro? No mínimo
que era um sacana e contrarrevolucionário. Um “ladrão barato”! O Comandante não
esperava outra coisa senão que o contraventor revelasse o quanto antes onde
havia escondido o dinheiro.
Nenhum dos homens se
manifestou... Então o Comissário reforçou as palavras de Sem Medo. Este resolveu
que revistaria um a um dos homens.
Neste
momento, o Chefe de Operações destacou que, pelo que se sabia, era Ekuikui quem
tinha ficado com o dinheiro. Ele bem poderia ter escondido a nota num buraco
qualquer! Devia saber que seriam revistados!
O homem destacou que
tudo o que pegaram dos detidos devia ter ficado com o Comissário. Por fim,
manifestou que a revista era uma ofensa sem tamanho, pois o que prevalecia era
a desconfiança.
O
Comissário vociferou que sabia que a culpa era toda sua... Ele sabia que o
outro estava querendo atacá-lo. Disse que havia guardado os demais objetos,
inclusive os relógios e que tudo fora devolvido. Emendou que não tinham o que
fazer a não ser a revista... Não havia ofensa nisso... Ekuikui já havia sido
revistado. A questão era que “por causa de um, todos pagavam”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/06/mayombe-de-pepetela-lutamos-e-revistado.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto