Milagre jamais se conformara com a crueldade dos imperialistas e o uso que faziam dos grandes tratores para massacrar os inocentes de seu país. Como esquecer da violenta morte do próprio pai, que teve a cabeça arrancada pela lâmina de uma daquelas máquinas?
É por isso que em seus registros destaca que destruía com prazer todos os buldôzeres que tivesse à frente. É por isso que com prazer destruíra aquele que estava sendo usado na extração da madeira.
A máquina tinha alguma culpa? O guerrilheiro sabia que o trator era como uma arma... No caso, dependia de quem o guiava.
Milagre desabafou sobre o que estava acontecendo naquele mesmo momento com Lutamos... O rapaz estava a falar com os trabalhadores, e era bem provável que lhes contasse que quisera avisá-los a respeito do ataque guerrilheiro, mas havia sido descoberto pelos demais... Como é que o Comandante podia permitir aquele “diálogo tribal”?
Certamente o Comandante não estava em Angola em 1961... Ou então podia ser que não tivesse sofrido nada das ofensivas imperialistas. O Comissário era outro “mole”, um tipo que achava que as palavras tinham mais valor do que o confronto armado. Para Milagre, com o povo de Cabinda aquilo não funcionaria! Ali só havia traidores!
O confiava mais no Chefe de Operações... Mas tinha de lamentar o fato de ele ser apenas o “terceiro no Comando”.
(...)
Milagre contou que
sua mãe teve de fugir de Angola... Ele era ainda um “miúdo” quando se
transferiram para Kinshasa... Mais tarde o tio que era um dos dirigentes do
MPLA levou-o para a guerrilha.
Nesse ponto da
narrativa, o rapaz salientou os erros do MPLA, que expulsava seus “melhores
quadros” (inclusive o seu tio; na opinião de Milagre, era porque eles não
aceitavam a predominância dos kikongos) e deixava de ser um movimento de
vanguarda. Destacou que na chamada “Primeira Região” o movimento ainda tinha
preeminência... Depois não deixou de salientar a incoerência de pertencerem
(ele e mais alguns) à Primeira Região e fazerem a guerra naquela localidade
remota e alheia, onde o povo era “contrarrevolucionário” e sequer falava a sua
língua.
(...)
A tarde foi de
caminhada exaustiva junto às margens do rio Lombe. Às seis horas a escuridão
tomava conta de todo o ambiente, então começaram a organizar o acampamento uma
hora antes.
Lutamos e um dos
trabalhadores pescaram... Por isso, além de arroz e feijão, todos puderam comer
peixe naquela noite.
Em nenhum momento os
detidos tentaram fugir. E não é porque não tiveram oportunidade... Houve
ocasião em que Milagre caiu e seus camaradas correram em seu socorro, deixando
os trabalhadores a sós. Em vez de empreenderem fuga, sentaram-se e aguardaram o
retorno dos guerrilheiros.
Aos poucos a relação foi se tornando ainda mais amistosa... O Comissário
aproveitou para fazer discursos que mostravam aos trabalhadores a necessidade
de lutarem contra a exploração imperialista.
Didaticamente, disse que o salário que recebiam era de vinte escudos ao
dia de trabalho no corte de árvores e nas longas caminhadas em que suportavam
pesos exorbitantes. Destacou que, por outro lado, motorista recebia cinquenta
escudos sem precisar derrubar uma só árvore.
O patrão ganhava muito dinheiro às custas da
labuta deles! E o patrão não fazia nada! O Comissário lembrou que eles
colocavam o próprio machado e catana a serviço do patrão... Pagavam setenta
escudos pelo machado e mais cinquenta pela catana... Tudo era descontado do
salário!
Um verdadeiro
absurdo! As árvores não pertenciam ao patrão! Elas pertenciam aos angolanos!
Com que direito o patrão pagava tão pouco por todo aquele trabalho de
exploração da riqueza angolana?
Por fim o oficial salientou que só mesmo a exploração colonialista
garantia aquela aberração. O patrão contava com o apoio do governo e a força do
exército para continuar explorando os pobres trabalhadores. Então perguntou-lhes
se os guerrilheiros haviam feito bem em destruir o buldôzer.
Os
sequestrados responderam afirmativamente.
(...)
O Comissário Político
voltou à carga...
Mostrou
a serra que haviam confiscado. Disse que o patrão a obteve junto aos alemães, mas
quis saber a quem verdadeiramente ela pertencia. Salientou que o dinheiro
utilizado na aquisição da serra havia sido juntado a partir de suas
explorações.
O rapaz chamado
Antônio antecipou-se a responder que os trabalhadores foram explorados... Então
o Comissário emendou que a serra pertencia a eles, ao povo. E era por isso que o
equipamento mecânico não podia voltar às mãos dos colonialistas. Seria o caso
de entregá-la aos detidos? Eles poderiam vendê-la ou utilizá-la?
O
mais velho respondeu que não podiam fazer uso do equipamento, então era melhor
que os guerrilheiros a levassem.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto