domingo, 3 de junho de 2018

“Mayombe”, de Pepetela – a narrativa pessoal de Milagre; críticas aos exploradores e gana pela destruição dos tratores colonialistas; referências à MPLA e o foco guerrilheiro afastado da “Primeira Região”, à postura de Sem Medo e aos contrarrevolucionários de Cabinda; Comissário Político e seu diálogo doutrinário com os trabalhadores prisioneiros

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/06/mayombe-de-pepetela-rumando-para-congo.html antes de ler esta postagem:

Milagre jamais se conformara com a crueldade dos imperialistas e o uso que faziam dos grandes tratores para massacrar os inocentes de seu país. Como esquecer da violenta morte do próprio pai, que teve a cabeça arrancada pela lâmina de uma daquelas máquinas?
É por isso que em seus registros destaca que destruía com prazer todos os buldôzeres que tivesse à frente. É por isso que com prazer destruíra aquele que estava sendo usado na extração da madeira.
A máquina tinha alguma culpa? O guerrilheiro sabia que o trator era como uma arma... No caso, dependia de quem o guiava.
Milagre desabafou sobre o que estava acontecendo naquele mesmo momento com Lutamos... O rapaz estava a falar com os trabalhadores, e era bem provável que lhes contasse que quisera avisá-los a respeito do ataque guerrilheiro, mas havia sido descoberto pelos demais... Como é que o Comandante podia permitir aquele “diálogo tribal”?
Certamente o Comandante não estava em Angola em 1961... Ou então podia ser que não tivesse sofrido nada das ofensivas imperialistas. O Comissário era outro “mole”, um tipo que achava que as palavras tinham mais valor do que o confronto armado. Para Milagre, com o povo de Cabinda aquilo não funcionaria! Ali só havia traidores!
O confiava mais no Chefe de Operações... Mas tinha de lamentar o fato de ele ser apenas o “terceiro no Comando”.
(...)
Milagre contou que sua mãe teve de fugir de Angola... Ele era ainda um “miúdo” quando se transferiram para Kinshasa... Mais tarde o tio que era um dos dirigentes do MPLA levou-o para a guerrilha.
Nesse ponto da narrativa, o rapaz salientou os erros do MPLA, que expulsava seus “melhores quadros” (inclusive o seu tio; na opinião de Milagre, era porque eles não aceitavam a predominância dos kikongos) e deixava de ser um movimento de vanguarda. Destacou que na chamada “Primeira Região” o movimento ainda tinha preeminência... Depois não deixou de salientar a incoerência de pertencerem (ele e mais alguns) à Primeira Região e fazerem a guerra naquela localidade remota e alheia, onde o povo era “contrarrevolucionário” e sequer falava a sua língua.

(...)

A tarde foi de caminhada exaustiva junto às margens do rio Lombe. Às seis horas a escuridão tomava conta de todo o ambiente, então começaram a organizar o acampamento uma hora antes.
Lutamos e um dos trabalhadores pescaram... Por isso, além de arroz e feijão, todos puderam comer peixe naquela noite.
Em nenhum momento os detidos tentaram fugir. E não é porque não tiveram oportunidade... Houve ocasião em que Milagre caiu e seus camaradas correram em seu socorro, deixando os trabalhadores a sós. Em vez de empreenderem fuga, sentaram-se e aguardaram o retorno dos guerrilheiros.
Aos poucos a relação foi se tornando ainda mais amistosa... O Comissário aproveitou para fazer discursos que mostravam aos trabalhadores a necessidade de lutarem contra a exploração imperialista.
Didaticamente, disse que o salário que recebiam era de vinte escudos ao dia de trabalho no corte de árvores e nas longas caminhadas em que suportavam pesos exorbitantes. Destacou que, por outro lado, motorista recebia cinquenta escudos sem precisar derrubar uma só árvore.
O patrão ganhava muito dinheiro às custas da labuta deles! E o patrão não fazia nada! O Comissário lembrou que eles colocavam o próprio machado e catana a serviço do patrão... Pagavam setenta escudos pelo machado e mais cinquenta pela catana... Tudo era descontado do salário!
Um verdadeiro absurdo! As árvores não pertenciam ao patrão! Elas pertenciam aos angolanos! Com que direito o patrão pagava tão pouco por todo aquele trabalho de exploração da riqueza angolana?
Por fim o oficial salientou que só mesmo a exploração colonialista garantia aquela aberração. O patrão contava com o apoio do governo e a força do exército para continuar explorando os pobres trabalhadores. Então perguntou-lhes se os guerrilheiros haviam feito bem em destruir o buldôzer.
Os sequestrados responderam afirmativamente.
(...)
O Comissário Político voltou à carga...
Mostrou a serra que haviam confiscado. Disse que o patrão a obteve junto aos alemães, mas quis saber a quem verdadeiramente ela pertencia. Salientou que o dinheiro utilizado na aquisição da serra havia sido juntado a partir de suas explorações.
O rapaz chamado Antônio antecipou-se a responder que os trabalhadores foram explorados... Então o Comissário emendou que a serra pertencia a eles, ao povo. E era por isso que o equipamento mecânico não podia voltar às mãos dos colonialistas. Seria o caso de entregá-la aos detidos? Eles poderiam vendê-la ou utilizá-la?
O mais velho respondeu que não podiam fazer uso do equipamento, então era melhor que os guerrilheiros a levassem.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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