domingo, 10 de junho de 2018

“Mayombe”, de Pepetela – pescaria, banhos, troca de ideias , contemplação e reflexões; o medo de deixar transparecer o medo; uma troca de ideias do comandante com o professor

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/06/mayombe-de-pepetela-lutamos-e-revistado.html antes de ler esta postagem:

Os homens percorriam a floresta no sentido da área em que os tugas exploravam a madeira. Esperavam encontrar tropas no caminho para emboscá-las.
Cerca de uma hora de caminhada após a confissão de Ingratidão do Tuga, Sem Medo sugeriu que parassem para pescar, pois assim poupariam comida. E os suprimentos estavam mesmo em baixa! O pouco que lhes restava consistia de lataria (corned-beef e sardinhas em conserva; leite) mais uma porção de arroz e de xikuanga (a folhagem que os elefantes também apreciavam).
(...)
O Comandante aproveitava os momentos de parada no meio da floresta para contemplar a natureza e também para refletir...
Do ponto em que estava pôde observar Lutamos e Mundo Novo ajeitarem-se no alto de uma pedra para preparar a tralha (anzóis e linhas) de pesca... Os demais se puseram a lavar-se no rio ou a trocar ideias.
Notou Teoria a esfregar o joelho e decidiu aproximar-se. Sem Medo acendeu um cigarro e quis saber do estado de sua contusão. O professor respondeu que ainda sentia dor, mas estava bem melhor.
Sem Medo falou sobre um episódio do tempo em que era ainda garoto de uns oito anos e confrontou um tipo maior do que ele... O outro o surrou para valer e na ocasião ele decidiu fugir e se esconder. Safou-se, mas a vergonha tomou conta de sua consciência... Será que se tornaria um tipo fraco que fugiria sempre que qualquer um o atacasse?
O professor ouvia a história... Estava na cara que o comandante esperava que o camarada tirasse alguma lição daquilo... Então explicou que decidiu que o remédio para combater aquele sentimento de impotência era desafiar novamente o grandalhão...
Outra luta aconteceu, mas dessa vez o pequeno Sem Medo decidiu resistir aos golpes. Considerou que devia fugir do medo e não da surra... Apanhou muito e de seu nariz começou a jorrar muito sangue... Salientou que seu nariz tornou-se torto por causa daquela luta da infância.
Certamente o grandalhão passou a não entender o que estava acontecendo... E foi ele quem decidiu interromper os golpes e deu por encerrada a contenda. Disse que o pequeno o havia derrotado. Depois os dois se tornaram bons amigos.
A lição que ficara era a de que não eram os golpes que doíam, mas sim o sentimento de derrota e de covardia. Sem Medo disse que desde então jamais fugira das situações perigosas. O que o desafiava constantemente era o saber até que ponto poderia dominar o medo.
(...)
Teoria quis entender por que o comandante se dispôs a dizer-lhe aquela história. Sem Medo devolveu-lhe outra pergunta querendo saber se o medo era uma constante em sua vida...
O professor assustou-se, mas também sentiu-se aliviado pela oportunidade de expor que sempre sentia medo... Simplesmente o medo o perseguia! Confessou que não sabia por que estava a confessar aquilo, mas achou que podia dizer mais a respeito de seu medo de participar dos combates e de fazer guarda durante a noite... Até mesmo viver na Base provocava-lhe medo!
Sem Medo disse que já fazia um bom tempo que desconfiava. Então perguntou por que o professor escondia a sua insegurança. Este foi ligeiro em sua exclamação... Será que um mestiço como ele tinha condição de demonstrar medo? O que vinha tentando fazer era dominar de uma vez por todas a situação! Sentia-se como se fosse dois (um que sempre tem medo, e outro que se mostrava destemido quando se oferecia para as ações de risco).
Sua situação de momento era exemplar... Tinha vontade de ficar pelo caminho e a sofrer com as dores no joelho, mas o seu “outro lado” insistia que a contusão não era nada e que tinha de prosseguir com os demais.
O professor entendia que suas incompatibilidades eram devidas à convivência com os outros... Era como se tivesse de mostrar a todo instante que também ele era um guerrilheiro valoroso. Todavia ele sabia que, fora da convivência, não passava de um covarde...
Ele sabia que os companheiros podiam expressar todo o seu racismo caso vacilasse... Por isso o seu lado mais fraco tinha de ser escondido.
(...)
Teoria desabafou... Disse que não era nada fácil viver daquela forma...
Sem Medo entregou-lhe o que restava de seu cigarro. O professor fumou-o até o fim com suas mãos trêmulas.
O Comandante disse que aquele tipo de sentimento contido era mesmo difícil de contar... Mas acrescentou que o desabafo podia fazer-lhe muito bem. Por isso era bom conversar. Muita gente sofria demais por jamais abrir-se em relação aos seus problemas mais secretos. E aquilo podia ser o fim!
Sem Medo quis tranquilizar o camarada... Disse que que havia muitos intelectuais que davam demasiada importância àquela questão... Eles sabiam que todos têm seus medos... Todos, de certa forma, possuem “duas personalidades”. Uma delas é a que carrega o medo, e a outra é a que supomos corajosa.
O medo em si não era o problema... O que todos têm dificuldade é de dominá-lo e “ultrapassá-lo”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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