Os homens percorriam a floresta no sentido da área em que os tugas exploravam a madeira. Esperavam encontrar tropas no caminho para emboscá-las.
Cerca de uma hora de caminhada após a confissão de Ingratidão do Tuga, Sem Medo sugeriu que parassem para pescar, pois assim poupariam comida. E os suprimentos estavam mesmo em baixa! O pouco que lhes restava consistia de lataria (corned-beef e sardinhas em conserva; leite) mais uma porção de arroz e de xikuanga (a folhagem que os elefantes também apreciavam).
(...)
O
Comandante aproveitava os momentos de parada no meio da floresta para contemplar
a natureza e também para refletir...
Do ponto em que estava
pôde observar Lutamos e Mundo Novo ajeitarem-se no alto de uma pedra para
preparar a tralha (anzóis e linhas) de pesca... Os demais se puseram a lavar-se
no rio ou a trocar ideias.
Notou
Teoria a esfregar o joelho e decidiu aproximar-se. Sem Medo acendeu um cigarro
e quis saber do estado de sua contusão. O professor respondeu que ainda sentia
dor, mas estava bem melhor.
Sem Medo falou sobre um
episódio do tempo em que era ainda garoto de uns oito anos e confrontou um tipo
maior do que ele... O outro o surrou para valer e na ocasião ele decidiu fugir
e se esconder. Safou-se, mas a vergonha tomou conta de sua consciência... Será
que se tornaria um tipo fraco que fugiria sempre que qualquer um o atacasse?
O professor ouvia a
história... Estava na cara que o comandante esperava que o camarada tirasse
alguma lição daquilo... Então explicou que decidiu que o remédio para combater
aquele sentimento de impotência era desafiar novamente o grandalhão...
Outra luta aconteceu,
mas dessa vez o pequeno Sem Medo decidiu resistir aos golpes. Considerou que devia
fugir do medo e não da surra... Apanhou muito e de seu nariz começou a jorrar muito
sangue... Salientou que seu nariz tornou-se torto por causa daquela luta da
infância.
Certamente o
grandalhão passou a não entender o que estava acontecendo... E foi ele quem
decidiu interromper os golpes e deu por encerrada a contenda. Disse que o
pequeno o havia derrotado. Depois os dois se tornaram bons amigos.
A lição que ficara era a de que não eram os golpes que doíam, mas sim o
sentimento de derrota e de covardia. Sem Medo disse que desde então jamais
fugira das situações perigosas. O que o desafiava constantemente era o saber
até que ponto poderia dominar o medo.
(...)
Teoria quis entender por que o comandante se dispôs a dizer-lhe aquela
história. Sem Medo devolveu-lhe outra pergunta querendo saber se o medo era uma
constante em sua vida...
O professor assustou-se, mas também sentiu-se
aliviado pela oportunidade de expor que sempre sentia medo... Simplesmente o medo
o perseguia! Confessou que não sabia por que estava a confessar aquilo, mas achou
que podia dizer mais a respeito de seu medo de participar dos combates e de
fazer guarda durante a noite... Até mesmo viver na Base provocava-lhe medo!
Sem Medo disse que já
fazia um bom tempo que desconfiava. Então perguntou por que o professor
escondia a sua insegurança. Este foi ligeiro em sua exclamação... Será que um
mestiço como ele tinha condição de demonstrar medo? O que vinha tentando fazer
era dominar de uma vez por todas a situação! Sentia-se como se fosse dois (um
que sempre tem medo, e outro que se mostrava destemido quando se oferecia para
as ações de risco).
Sua situação de momento era exemplar... Tinha vontade de ficar pelo
caminho e a sofrer com as dores no joelho, mas o seu “outro lado” insistia que
a contusão não era nada e que tinha de prosseguir com os demais.
O
professor entendia que suas incompatibilidades eram devidas à convivência com
os outros... Era como se tivesse de mostrar a todo instante que também ele era
um guerrilheiro valoroso. Todavia ele sabia que, fora da convivência, não
passava de um covarde...
Ele sabia que os
companheiros podiam expressar todo o seu racismo caso vacilasse... Por isso o
seu lado mais fraco tinha de ser escondido.
(...)
Teoria
desabafou... Disse que não era nada fácil viver daquela forma...
Sem Medo entregou-lhe
o que restava de seu cigarro. O professor fumou-o até o fim com suas mãos
trêmulas.
O Comandante disse
que aquele tipo de sentimento contido era mesmo difícil de contar... Mas
acrescentou que o desabafo podia fazer-lhe muito bem. Por isso era bom
conversar. Muita gente sofria demais por jamais abrir-se em relação aos seus
problemas mais secretos. E aquilo podia ser o fim!
Sem Medo quis
tranquilizar o camarada... Disse que que havia muitos intelectuais que davam
demasiada importância àquela questão... Eles sabiam que todos têm seus medos...
Todos, de certa forma, possuem “duas personalidades”. Uma delas é a que carrega
o medo, e a outra é a que supomos corajosa.
O
medo em si não era o problema... O que todos têm dificuldade é de dominá-lo e “ultrapassá-lo”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto