domingo, 15 de abril de 2018

“O Burrinho Pedrês” – conto de “Sagarana” – de João Guimarães Rosa – a história do Calundú foi interrompida por causa da forte tormenta; cantoria para as ocasiões de chuva; Raimundo retomou o causo da onça que vinha das matas de Mato Grosso; quem ousaria enfrentar o guzerá velho de guerra?

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/04/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_79.html antes de ler esta postagem:

Raimundão tinha mais a dizer sobre o zebu Calundú e o episódio daquela noite de lua cheia no Retiro...
Mas a chuva havia chegado de vez. E ela vinha como um “pé-d'água” de chamar a atenção dos homens, que interromperam a narrativa para observá-la melhor.
(...)
A chuvarada veio “branquejante, farfalhando rumorosa, vinda de trás e não de cima, de carreira” e envolveu a boiada numa bruma só.
O nevoeiro dominou a atmosfera e o que se via do gado eram vultos que pareciam ainda mais crescidos... O som de suas pisadas mudou completamente e o que se ouvia era algo parecido com a “corrida no bagaço”. Os mugidos pareciam indicar impaciência, mas na dianteira o berrante trombeteou ainda mais forte.
Aconteceu que a intensidade da chuva aumentou espantosamente... O vapor opaco tornou a visão ainda mais precária e os vaqueiros não conseguiram enxergar os animais.
Alguém gritou que deviam voltar a cantar... Era preciso acalmar a manada e logo todos eles soltaram a voz:

“Chove, chuva, choverá,
Santa Clara a clarear
Santa Justa há-de justar
Santo Antônio manda o sol
P'ra enxugar o meu lençol... “

Um dilúvio! Parecia que estavam atravessando as águas de uma catarata violenta...
(...)
Demorou, mas o pior do temporal passou... A chuva tornou-se chuvisco e logo se transformou em umidade do ar.
Os homens que acompanhavam Raimundo e sua história sobre o Calundú quiseram saber da onça que, pelo visto, estava a caminho do pasto do Recanto.
Raimundo contou que toda a gente dizia que ela tinha vindo de outras bandas... Era uma “onça-tigre macha” e vinha “das matas do Moto Grosso”.
Certamente os vaqueiros pensaram na longa distância... Então Raimundo antecipou-se a explicar que “onça é bicho doido para caminhar, e que anda só de noite, campeando o que sangrar”... E acrescentou que ele mesmo achava que ela estivesse há muitas léguas, lá pelas bandas do Maquiné.
E o Calundú? Era o que os rapazes queriam saber... Raimundo disse que logo que ouviu o miado da onça seguiu para “perto de um angico novo”. Explicou que procedeu dessa forma porque o felino não trepa nos troncos finos. Ao mesmo tempo pedia a Deus que ela não fosse para o seu lado.
Ele contou que só ficou mais aliviado depois que ouviu novo miado que vinha dos fundos do tabocal. Evidentemente as tabocas deviam ocupar um terreno mais afastado do Angico onde Raimundo se posicionou. Então pôde ver que o Calundú se tornou impaciente, batendo dos cascos no chão e bufando com muita raiva.
Raimundo deu a entender que a visão o deixou mais tranquilo e que até se animou... Contou que passou a se sentir protegido pelo zebu e que teve um pouco de pena da onça.
A lua cheia iluminava o lugar e não foi difícil identificar o vulto da canguçu (a onça) logo que ela se aproximou. Neste ponto da narrativa, os moços arregalaram os olhos... Um deles disse que já vira uma suçuarana e quis saber se a fera chegou urrando.
Raimundo respondeu que onça não tocaia criação desse jeito... Ela chega como gato quando quer pegar passarinho... Se aproxima “deitada, escorregando devagarinho, com a barriga no chão, numa maciota, só com o rabo bulindo”...
Da onça, ele podia ver os olhos que ficaram “alumiados” num verde de vagalume.
(...)
Os detalhes pareciam não importar aos vaqueiros...
Um deles perguntou se a onça “pulou no cangote do zebu”... Raimundo se admirou com o disparate e respondeu um “que nada!” (literalmente “Que óte! Que ú!”, referindo-se a cangote e zebu)... Destacou que ela não teve coragem, e que nem mesmo “o capeta não era gente de chegar no guzerá velho-de-guerra”.
Salientou que nenhum “toureiro afamado, nem vaqueiro bom, Mulatinho Campista, Viriato mais Salathiel, coisa nenhuma” seriam páreo para o Calundú... A menos que tivessem “vontade de morrer suicidado sem querer”.
Leia: O Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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