Raimundão tinha mais a dizer sobre o zebu Calundú e o episódio daquela noite de lua cheia no Retiro...
Mas a chuva havia chegado de vez. E ela vinha como um “pé-d'água” de chamar a atenção dos homens, que interromperam a narrativa para observá-la melhor.
(...)
A chuvarada veio “branquejante, farfalhando rumorosa, vinda de trás e
não de cima, de carreira” e envolveu a boiada numa bruma só.
O
nevoeiro dominou a atmosfera e o que se via do gado eram vultos que pareciam
ainda mais crescidos... O som de suas pisadas mudou completamente e o que se
ouvia era algo parecido com a “corrida no bagaço”. Os mugidos pareciam indicar
impaciência, mas na dianteira o berrante trombeteou ainda mais forte.
Aconteceu que a intensidade
da chuva aumentou espantosamente... O vapor opaco tornou a visão ainda mais
precária e os vaqueiros não conseguiram enxergar os animais.
Alguém
gritou que deviam voltar a cantar... Era preciso acalmar a manada e logo todos
eles soltaram a voz:
“Chove, chuva,
choverá,
Santa Clara a clarear
Santa Justa há-de
justar
Santo Antônio manda o
sol
P'ra enxugar o meu
lençol... “
Um dilúvio! Parecia que
estavam atravessando as águas de uma catarata violenta...
(...)
Demorou, mas o pior
do temporal passou... A chuva tornou-se chuvisco e logo se transformou em umidade
do ar.
Os homens que
acompanhavam Raimundo e sua história sobre o Calundú quiseram saber da onça que,
pelo visto, estava a caminho do pasto do Recanto.
Raimundo contou que toda a gente dizia que ela tinha vindo de outras
bandas... Era uma “onça-tigre macha” e vinha “das matas do Moto Grosso”.
Certamente os vaqueiros pensaram na longa distância... Então Raimundo
antecipou-se a explicar que “onça é bicho doido para caminhar, e que anda só de
noite, campeando o que sangrar”... E acrescentou que ele mesmo achava que ela
estivesse há muitas léguas, lá pelas bandas do Maquiné.
E o Calundú? Era o que os rapazes queriam
saber... Raimundo disse que logo que ouviu o miado da onça seguiu para “perto
de um angico novo”. Explicou que procedeu dessa forma porque o felino não trepa
nos troncos finos. Ao mesmo tempo pedia a Deus que ela não fosse para o seu
lado.
Ele contou que só
ficou mais aliviado depois que ouviu novo miado que vinha dos fundos do tabocal.
Evidentemente as tabocas deviam ocupar um terreno mais afastado do Angico onde
Raimundo se posicionou. Então pôde ver que o Calundú se tornou impaciente, batendo
dos cascos no chão e bufando com muita raiva.
Raimundo deu a entender que a visão o deixou mais tranquilo e que até se
animou... Contou que passou a se sentir protegido pelo zebu e que teve um pouco
de pena da onça.
A
lua cheia iluminava o lugar e não foi difícil identificar o vulto da canguçu (a
onça) logo que ela se aproximou. Neste ponto da narrativa, os moços arregalaram
os olhos... Um deles disse que já vira uma suçuarana e quis saber se a fera
chegou urrando.
Raimundo respondeu
que onça não tocaia criação desse jeito... Ela chega como gato quando quer
pegar passarinho... Se aproxima “deitada, escorregando devagarinho, com a
barriga no chão, numa maciota, só com o rabo bulindo”...
Da
onça, ele podia ver os olhos que ficaram “alumiados” num verde de vagalume.
(...)
Os detalhes pareciam
não importar aos vaqueiros...
Um deles perguntou se a onça “pulou no cangote do zebu”... Raimundo se
admirou com o disparate e respondeu um “que nada!” (literalmente “Que óte! Que
ú!”, referindo-se a cangote e zebu)... Destacou que ela não teve coragem, e que
nem mesmo “o capeta não era gente de chegar no guzerá velho-de-guerra”.
Salientou
que nenhum “toureiro afamado, nem vaqueiro bom, Mulatinho Campista, Viriato
mais Salathiel, coisa nenhuma” seriam páreo para o Calundú... A menos que
tivessem “vontade de morrer suicidado sem querer”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/04/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_42.html
Leia: O
Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto