domingo, 15 de abril de 2018

“O Burrinho Pedrês” – conto de “Sagarana” – de João Guimarães Rosa – Raimundo finalizou a fantástica história do ataque da canguçu ao rebanho defendido pelo Calundú; as fortes chuvas encheram o córrego e trouxeram correnteza violenta desde as cabeceiras; comentários sobre a travessia de rebanhos no Jequitinhonha


A descrição que Raimundo fez do zebu Calundú na noite em que a canguçu foi ao Recanto para atacar uma das crias do Major Saulo foi de arrepiar.
Ele acrescentou aos vaqueiros que parecia que havia certa magia na atmosfera daquela noite. A fisionomia do garrote encheu-se de ferocidade ao mesmo tempo em que adquiria uma estatura fenomenal.
Raimundo deu a entender que se um dos que o ouviam o tivessem visto diriam que ele estava chamando a onça para o combate. Com o comportamento alterado, o grandalhão podia estar transmitindo os mais feios palavrões à felina!
Neste ponto é melhor ficarmos com as palavras do contador do causo:

         “a corcunda (do Calundú) ia até lá em baixo, no lombo, e, na volta, passava do lugar seu dela e vinha pôr chapéu na testa do bichão. Cruz!  E até a lua começou a alumiar o Calundu mais do que as outras coisas, por respeito”...


(...)
Imaginamos Raimundo falando apaixonadamente sobre o episódio... Seus olhos deviam brilhar!
Um dos vaqueiros disse que quase não estava mais acreditando no que ouvia... Então Raimundo observou que podia ter se iludido por uma visão que dominou a sua consciência... Ele mesmo já não duvidava de nada. Na sequência disse que mais tarde ficou sabendo que também as onças tinham um anjo da guarda.
A respeito de sua última consideração, Raimundo ressaltou que todos ali deviam saber que o tigre só arma o seu bote depois de verificar tudo à sua volta... O bicho deve pensar! E nos momentos de ataque pensa todas as possibilidades e nunca deixa de pular. Mas com a canguçu foi diferente naquela noite... Parece que estava tudo certo, mas no último momento deve ter pensado um pouco mais e passou a dar uns passos para trás... Fez isso rastejando por um bom pedaço. Depois disparou a correr para muito longe sem dar um miado sequer.
O que mais Raimundo podia dizer sobre a onça? Apenas que ela havia sido muito esperta... Os demais vaqueiros concordaram.

(...)

Estavam chegando ao córrego...
A certa distância puderam notar que estava bem cheio... A água já atingia a metade de um pé de ingazeiro de grande porte localizado no leito. Não se via mais o barranco e um dos homens apostou que até à noite a água subiria ainda mais.
Por experiência, sabiam que haveria problema no trecho... A lua não era boa... O ano terminava em seis... A grande quantidade de folhas de buriti na correnteza era um indicador de que a água vinha desde as cabeceiras.
Os homens pararam com os animais para observar com atenção aquele desastre... Um deles disse que ouvira o comentário sobre as chuvas nas nascentes que já duravam quatro dias.
Neste momento Francolim chegou trazendo recado para o Sebastião segurar o pessoal... Deviam esperar “e não apertarem o gado na travessia”.
Ao que tudo indica, o Bastião deu sua opinião... Disse que a situação estava bem complicada, mas não se comparava às passagens de boiadas pelo rio Jequitinhonha. Francolim concordou, disse que conhecia aquelas paragens e que certa vez fizera a travessia de “seiscentas cabeças de gado da Bahia”. Sobre o Jequitinhonha, tinha a dizer que não era a sua largura o que mais dificultava, mas a sua correnteza brava. Então tocavam um lote de bois mais mansos e acostumados à situação... Havia vaqueiros que alugavam bois que não tinham medo das águas... Conseguiam isso em sítios da beira do rio. Depois os homens podiam atravessar numa barcaça enquanto vigiavam a boiada nadar.
(...)
O major chegou e foi direto ao Sebastião. O patrão comentou que o vau (o ponto de travessia a pé) estava bem pior do que o resto... Por isso sugeriu descerem mais para encontrar outra travessia.
Sebastião respondeu que não encontrariam outro lugar onde pudessem passar com segurança... Emendou que na outra margem havia desbarrancamentos e isso seria um problema para a saída. Então, em sua opinião, o melhor seria passarem por ali mesmo... Pelo menos conheciam o lugar.
Leia: O Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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