Sabemos que a noite no Paquequer teve mais do que suas criaturas se movimentando na escuridão...
Na manhã seguinte, um domingo, vemos Cecília estampando toda a sua graciosidade... Ela entrou no jardim para conversar com Peri. O diálogo entre eles é como que uma síntese da pureza que marcava o seu relacionamento. Cecília chamou a atenção do amigo como quem quer repreender, mas não conseguia esconder que por dentro estava feliz por vê-lo novamente e fora de perigo. Ela disse-lhe que estava zangada porque, em vez de permanecer perto dela, decidiu colocar a vida em risco numa perigosa caçada... Peri a chamou de “Ceci” (que a nota esclarece ser verbo da língua guarani que significa “magoar”), e disse que tudo aconteceu porque ela havia manifestado o desejo de ver uma onça viva... De sua parte, a moça quis fazê-lo entender que estava apenas gracejando quando disse aquelas palavras, e que não precisava ir atrás da fera como se fosse um louco...
Demonstrando todo devotamento e sua ingenuidade infantil, Peri explicou que bastava Cecília desejar (o que quer que fosse) para ele atendê-la, indo atrás de uma flor, um pássaro ou uma fera como a onça que havia caçado... Até onde conseguia, Cecília procurou aparentar severidade e quis que o amigo entendesse que sua última caçada não podia ser comparada à captura de um pássaro... Ele disse que tudo dava no mesmo quando se tratava de um prazer de Cecília que precisasse se concretizar... A moça quis ensiná-lo que o seu procedimento não era correto e, para colocá-lo em contradição, provocou-o sobre o que faria se ela desejasse uma nuvem... Peri respondeu que, não sendo a nuvem um elemento da terra, morreria e pediria ao “Senhor do céu” para entregá-la a Ceci.
Cecília demonstrou toda a sua gratidão ao amigo e disse que não estava mais zangada... Contou que havia ficado aflita com o episódio... E que por causa dele havia chorado também... Peri pediu que o perdoasse... A amiga não só o perdoou como entregou-lhe o par de pistolas que havia encomendado... Peri manifestou o seu contentamento e Cecília insistiu para que ele nunca deixasse de carregá-las, pois eram uma lembrança sua e elas deviam ser usadas caso Peri enfrentasse algum perigo... Ele entendeu que proteger a própria vida passou a ser uma obrigação porque também a considerava posse de Cecília... Muito mais por esse sentimento foi que acomodou as armas em sua cinta... “Admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto”.
Foi então que apareceu Isabel... Ela e Peri não se davam bem, sequer se olhavam... Era uma relação de antipatia recíproca que aumentava a cada dia que passava. Notava-se que Isabel passara a noite em claro e, com um pouco mais de atenção, seria possível perceber que trazia o rosto ainda marcado por lágrimas... Cecília disse ao índio que as duas iriam banhar-se no rio...
(...)
Em ocasiões como aquela Peri permanecia a uma considerável distância,
devidamente escondido em alguma árvore e pronto para disparar uma de suas
flechas em qualquer desavisado aventureiro que se aproximasse do local de
recreio de sua senhora... Os agregados de d. Mariz respeitavam o momento íntimo
de sua filha e se afastavam do local de banho, mas diziam injúrias contra Peri
quando notavam o próprio chapéu varado por uma de suas flechas... É certo que
Cecília e Isabel banhavam-se vestidas em trajes escuros feitos para aquelas
ocasiões... Embora tudo o que ficasse à mostra eram apenas os seus pés e braços
juvenis de Cecília, Peri não aceitava que a vissem ou a incomodassem.
Peri se comportava como escravo de Cecília e a tratava como divindade
única que jamais poderia ser ofendida por quem quer que fosse... Seu zelo era
de tal forma rigoroso que obrigava-o a afastar qualquer outro tipo de incômodo
que pudesse advir da própria natureza (algum peixe, cobra d’água, saguis...)...
Galhos, folhas e pequenos frutos também eram constantemente vigiados por ele...
Antes que caíssem na água, Peri os atingia com a flecha... Se os percebia
flutuando ao longe, lançava-se no rio para impedir que chegassem até onde
Cecília estava... Ele não se perdoaria se, por acaso, ela se assustasse com
algum tronco...
(...)
Aconteceu que ao se retirarem para o rio, as duas moças toparam com
Álvaro. O máximo que recebeu de Cecília foi um leve sorriso como forma de
saudação... Ele, que gostaria de perceber algum sinal de que estava perdoado e
que seu presente havia sido bem recebido, ficou decepcionado com a frieza da
outra... Então Álvaro quis segui-la para que tivessem uma conversa esclarecedora...
Mas desistiu ao notar que estava sendo observado bem de perto por Loredano, que
o cumprimentava com sarcasmo... Os olhares que trocaram manifestavam ódio...
Peri, que passava por ali para acompanhar a sua senhora, percebeu a situação
constrangedora... Foi com ironia que segurou pelo cano as armas que acabara de
ganhar, dando a entender que apresentava-as aos dois oponentes (para um
duelo?).
Tanto Álvaro quanto Loredano notaram que o índio
havia percebido o ódio em seus olhares... Perceberam que era bem provável que
Peri soubesse os motivos daqueles ressentimentos aflorados. Então retiraram-se e
cada um seguiu para o seu lado.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/07/o-guarani-de-jose-de-alencar-isabel.html
Leia: O guarani. Editora Ática
Um abraço,
Prof.Gilberto