A história de Martelino contada por Neífile rendeu boas risadas de suas companheiras... Filóstrato, que era o rapaz mais próximo à narradora, e que entre os moços era o que mais achou graça das confusões nas quais Martelino havia se envolvido, teve a incumbência de contar a segunda novela do dia.
(...)
Dirigindo-se às mulheres do grupo, o rapaz disse que contaria uma
história que envolveria temas católicos, “desventuras e amor”... Ressaltou que
o conteúdo traria advertências aos que costumam mergulhar a fundo nas
paixões... E fez referências aos perigos que o desmedidamente apaixonado corre,
sobretudo se não se precaver rezando o “padre-nosso de são Juliano” (que a nota
esclarece ter sido um desventurado que, sem reconhecer pai e mãe, matou-os...
Por esse pesar tornou-se penitente, deixando o convívio social e o dinheiro
para viver numa casa bem simples que construiu às margens de um rio. Desde
então hospedou a todos os que o visitavam e transportou os que necessitavam de
travessia para o outro lado do rio... Durante a idade Média era considerado o
santo protetor dos viajantes).
Filóstrato situa a sua
história no tempo do marquês Azzo (de Ferrara)... Contou que o mercador Rinaldo
d’Asti precisou deslocar-se até Bolonha devido aos seus negócios... Já em seu
retorno, no caminho para Verona, encontrou três tipos que também seguiam
estrada... O bom Rinaldo, que contava com apenas um serviçal, não sabia que se
tratavam de ladrões que viviam de surripiar homens como ele, que cavalgavam por longos percursos. Aqueles bandidos tinham mesmo má conduta e péssimos
antecedentes... Mas, também para se entreter, nosso ingênuo personagem prosseguiu
na companhia do trio de malfeitores... Os tipos logo perceberam que ele era um
mercador e decidiram que o roubariam.
Enquanto não chegava o momento propício, eles
prosseguiram conversando com o bom homem... Rinaldo não desconfiava de nada
porque os assuntos eram sobre “coisas decentes”... Além disso, os marginais se
esforçavam por se apresentarem como pessoas de bom caráter e de boa condição...
Eles conseguiam aparentar bondade e humildade, então Rinaldo considerava-se um
privilegiado por prosseguir o caminho naquela companhia... Falavam sobre os
mais diversos assuntos até que chegaram ao tema das “orações que os homens
fazem a Deus”...
Um dos malfeitores quis saber qual era a oração que Rinaldo fazia
enquanto seguia em suas viagens... O mercador respondeu com sinceridade que se
tratava de um leigo naqueles assuntos e que em sua vida aprendera poucas
orações... Arrematou que quando deixava a hospedaria era comum rezar um
padre-nosso e uma Ave Maria em memória dos pais de são Juliano... Disse que
pedia a Deus e ao santo a proteção e a graça de poder se hospedar numa boa
estalagem ao final do dia de viagem... Revelou que já havia passado por vários
perigos em suas andanças e que se livrara de todos eles, conseguindo passar
boas noites em bons ambientes... Por si só, isso justificava a sua fé em são
Juliano.
O bandido ouviu atentamente o relato do inocente
mercador e quis saber se na manhã daquele dia ele havia feito as suas
orações... Rinaldo evidenciou que sim. O bandido disse para si mesmo que a sua
potencial vítima teria, de fato, necessidade daquela oração, pois se o mercador
não estava totalmente sem dinheiro, passaria mal na próxima noite... Fazendo
crer que se tratava de atencioso interlocutor, emendou dizendo que também era
muito viajado e que, embora ouvisse muita gente recomendar aquelas orações, ele
jamais orara para são Juliano ou a seus pais... Revelou que eventualmente pronunciava
o Dirupiste, ou a Intemerata, ou o De Profundis recomendados por uma de suas avós... Garantiu que
sempre acabava se instalando muito bem, e finalizou lançando a Rinaldo uma
reflexão sobre qual dos dois finalizaria melhor o dia, se o mercador devotado,
ou ele que não dedicava nenhum pensamento a são Juliano.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/07/decamerao-de-giovanni-boccaccio-segunda_26.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto