sexta-feira, 3 de junho de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – coletando botas dos que tombaram durante o confronto; nenhuma novidade no front?; haveria repercussão sobre aquela guerra?; à distância não se tem noção da labuta do soldado em combate; imposição de submissão e alienação ao campesinato

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/06/a-guerra-do-futebol-de-ryszard.html antes de ler esta postagem:

Kapuscinski viu-se numa complicada situação.
Sabia que se não acompanhasse o soldado desconhecido voltaria a ficar sozinho e sem saber qual direção tomar... Não se tratava de drama qualquer, principalmente porque não tinha a menor ideia de qual dos dois exércitos havia se tornado “senhor da área”.
(...)
Decidiu acompanhar o jovem. Percebeu que conforme avançavam os sons do confronto cresciam.
Chegaram às proximidades de um morteiro rodeado de cadáveres. O polonês exigiu que o rapaz resolvesse a coleta de botas ali mesmo, pois não aceitaria avançar mais.
O soldado entregou-lhe o fuzil e saiu em disparada na direção dos mortos. O perigo de aparecer um salvadorenho com granadas era real, então restou a Kapuscinski torcer para que não fossem avistados pelos inimigos.
Enquanto o jornalista pensava apenas em se arrastar para um local seguro, o soldado tratou de esconder o espólio conquistado. O moço esforçou-se para mentalizar o esconderijo, assim poderia reencontrá-lo ao final da guerra.
(...)
Uma chuva fina caía sobre a floresta... Os dois procuraram se afastar das áreas que consideravam muito próximas das “operações militares”.
É provável que estivessem na região de fronteira com a Guatemala... Kapuscinski pensou que mais à frente estava o México e que mais adiante ainda estariam os Estados Unidos... Naquele instante, as pessoas desses países levavam uma vida normal... Saberiam que Honduras e El Salvador travavam um conflito bélico?
Pelo menos para o polonês, a ideia de que a televisão pudesse transmitir guerras e seus horrores “no calor da hora” era algo distante... Ele pensou a respeito dos profissionais que trabalham em mesas de edição e concluiu que, para eles, uma guerra é algo que se aproxima de um espetáculo.
A realidade é completamente diferente! O distanciamento dos que repercutem uma guerra através dos diversos meios de comunicação com sede nos grandes centros não permite que eles tenham noção dos reais problemas de um soldado.
Desumana é a condição daquele que deve estar atento aos menores movimentos à sua volta... Em ação, na maioria das vezes, ele mal consegue enxergar a ponta do nariz, pois seus olhos permanecem cobertos de poeira e suor.
Kapuscinski sabia que o soldado em batalha normalmente tem pouco a dizer. Na maioria das vezes ele se manifesta através de gestos... Sua proximidade com a morte (dos outros e a sua) o torna um tipo marcado para sempre... Ele jamais se esquecerá do sufoco experimentado nas trincheiras ou nos pisos das florestas que teve de rastejar.
(...)
Kapuscinski perguntou ao soldado a respeito dos motivos da guerra contra El Salvador... O jovem não tinha resposta. Disse que aquilo se tratava de “assunto de governo”.
Depois o polonês quis saber como é que alguém se dedica a lutar, arriscando a própria vida, sem saber os motivos... O soldado disse que era um camponês e que vivia num vilarejo onde as pessoas não ousam fazer perguntas desse tipo, pois isso “chama a atenção do prefeito”... Emendou que, para os “questionadores”, havia sempre uma punição imposta pelas autoridades. E na maior parte dos casos isso significava ser deslocado para o trabalho em obras públicas. Dessa forma ficava-se sem ter como se dedicar à sua pouca terra.
Em síntese, o jovem soldado queria dizer que “falar demais” resultava em dificuldades para toda a família.
A conclusão era óbvia... O camponês devia viver modestamente e sem chamar a atenção dos poderosos. Os “assuntos de governo” deviam permanecer nas altas esferas...
Kapuscinski entendeu que, para o rapaz, camponeses como ele deviam permanecer sem consciência definida sobre a realidade que vivenciam.
E mais: Nenhuma autoridade se importava com a situação campesina ou pretendia alterá-la.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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