quinta-feira, 2 de junho de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – do receio de cair na mãos de soldados salvadorenhos; o “salvo conduto” emitido pelo comandante do exército hondurenho e a possibilidade de afastar-se do front; no vilarejo, a família de pés descalços; na mata, inúmeras botas nos pés de soldados que podiam morrer a qualquer momento

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_75.html antes de ler esta postagem:

Encontrar-se frente a frente com um soldado (que está preparado para matar) no meio da mata e em pleno tiroteio é algo que nenhum jornalista correspondente de guerra quer vivenciar.
Para Kapuscinski, o pior seria se aquele militar pertencesse às tropas salvadorenhas. Ele e os demais repórteres haviam aprendido com a propaganda hondurenha que eles eram tipos cruéis e que, em plena batalha, não vacilavam ao fuzilar os que “lhes caíam nas mãos”. Nem mesmo os ingleses e americanos se sentiam garantidos e poupados no caso de serem capturados pelos salvadorenhos.
Com desgosto, o polonês lembrou-se de que em Nacaome havia visto “o corpo de um missionário americano massacrado por salvadorenhos”.
(...)
Kapuscinski percebeu que também o soldado parecia assustado... O tipo era escuro e tinha uniforme e capacete camuflados com folhagens... Sua magreza denunciava precariedade, mas evidentemente o mauser que carregava o colocava em vantagem na situação.
O jornalista apressou-se a perguntar a respeito do exército do qual o jovem fazia parte... Ao notar que o estranho não pertencia a nenhum dos dois países em confronto, o soldado se sentiu à vontade para responder. Tratava-se de soldado das tropas hondurenhas.
A resposta trouxe alívio a Kapuscinski... Chamou o outro de “irmão querido” ao mesmo tempo em que lhe mostrou a autorização emitida pelo comandante do exército de Honduras, o coronel Ramires Ortega.
O papel, cada um dos correspondentes estrangeiros possuía o seu, era como que um “salvo conduto” para percorrer as zonas de combate no país. Kapuscinski foi dizendo que precisava ser levado até Santa Rosa e depois para Tegucigalpa, onde tinha de encaminhar telegrama para Varsóvia.
Também o soldado imaginou que aquilo era a “sorte grande”, já que o documento o colocaria a serviço do gringo... Aquilo era ordem expressa do próprio comandante do exército. Significava que ao “conduzir o repórter estrangeiro” poderia se afastar do front. E bastaria que Kapuscinski dissesse ao seu superior que ele devia acompanhá-lo.
A atmosfera era das piores... Tremendo cheiro de pólvora e barulho ensurdecedor de armas de fogo... Certamente o rapaz não tinha a menor ideia dos motivos da guerra... Não sabia por que estava ali atirando a esmo e fugindo de rajadas inimigas...
A oportunidade era esplêndida!
(...)
Kapuscinski e o soldado estavam deitados no chão...
No ponto onde estavam podia-se concluir que mais acima se localizava a curva onde os repórteres tiveram de saltar do caminhão... O grupamento do rapaz subia naquela direção, mas não era uma subida uniforme, pois a tropa tinha de recuar diversas vezes.
Os dois podiam avistar os pés dos soldados... Então o moço comentou a respeito da grande quantidade de solas de botas... Disse isso destacando que toda a sua família (ele tinha nove filhos) vivia de pés descalços.
(...)
Os tiros cessaram...
O rapaz solicitou a Kapuscinski que o aguardasse porque estava decidido a retornar ao local onde a tropa havia entrado em confronto, Ele tinha certeza de que encontraria muitos mortos. Sua ideia era extrair e esconder alguns pares de botas dos cadáveres. Depois que a guerra chegasse ao fim tentaria trocar cada par de botas por três pares de calçados infantis.
Kapuscinski tentou dissuadi-lo da ideia e dizer que, estando sob seu comando, o moço devia obedecê-lo. Mas o jovem estava decidido e, pelo visto, começara a enxergar uma motivação para “prosseguir na guerra”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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