sábado, 2 de janeiro de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – burocracia e vícios da elite administrativa argelina nos primeiros anos após a independência; legado colonial francês e decadência econômica; isolamento político de Ben Bella; desigualdade social

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/01/a-guerra-do-futebol-de-ryszard.html antes de ler esta postagem:

É preciso entender também como a sociedade argelina se estruturou após a independência...
Pouca coisa mudou...
A administração colonial havia cuidado de criar uma elite formada por nativos aculturados. Esses foram modelados “à francesa” e passaram a constituir uma burguesia administrativa que sempre se manteve distante do “resto da sociedade”.
O ambiente dos privilegiados sempre foi o dos escritórios instalados na cidade grande... Seu estilo de vida sempre foi marcado por valores europeus...
(...)
Por incrível que possa parecer, mesmo depois de um processo de lutas marcado por violências, perdas e sofrimentos, não ocorreu nenhuma reforma que eliminasse as diferenças sociais...
Todos os partidos, de modo generalizado, desde as agremiações conservadoras até a dos os comunistas, possuíam filiados que pertenciam à “minoria culta”... Como formavam a intelligentsia, sentiam-se no direito de decidir os rumos políticos do país sem alterar as condições de vida de seus pares.
A administração que se efetivou após a emancipação serviu-se desse pessoal, que sempre falou francês fluentemente (e isso era uma das principais prerrogativas para o exercício das funções nas diversas secretarias de Estado).
(...)
Para Kapuscinski, dificilmente os efeitos das mudanças implementadas por Ben Bella seriam notados... É que a elite dominante não tinha o menor interesse de “diminuir o fosso entre a realidade da capital e o resto do país” e sequer pensava nesse problema.
O autor esclarece que em suas conversas com outros jornalistas ouviu dizer que nem os membros do governo nem os integrantes dos partidos políticos tinham interesse ou queriam saber da realidade dos vilarejos, cujos habitantes representavam oitenta por cento da população...
Ben Bella parecia ser um dos poucos que lutavam por reformas... Ele não aceitava o “estilo francês” de fazer política (herdado pela elite argelina), que se preocupava mais com as “intrigas palacianas” e se interessava excessivamente pelos boatos que envolviam figurões. Infelizmente os dados sobre a grande quantidade de desempregados no país (em torno de três milhões) não incomodavam aqueles que deviam apresentar propostas políticas para melhorar o panorama social...
O salário daquela gente poderosa era simplesmente incomparável aos dos trabalhadores médios... E mesmo em relação aos funcionários da França, pode-se dizer que os burocratas argelinos tinham “vencimentos estratosféricos”...
(...)
Conforme os altos funcionários franceses da administração colonial foram se retirando de seus cargos, argelinos ocuparam os postos de trabalho recebendo os mesmos salários.
O governo Ben Bella manifestava seu compromisso em construir um modelo socialista que tirasse o país do atraso... Todavia metade do orçamento da Argélia ficava comprometida com o pagamento da burocracia elitista e improdutiva. E como não foi feito nenhum decreto para acabar com esse disparate, a situação só podia se agravar cada vez mais...
(...)
A situação anteriormente apresentada tem a ver com o legado colonial francês... Mas isso não é tudo... A Argélia enfrentava sérios problemas econômicos, não tinha como se autossustentar e continuou a integrar o “organismo econômico francês”...
Sua indústria tinha pouco significado para a economia, já que participava com 20% da arrecadação nacional... O país inteiro contava cerca de duzentos e quarenta mil trabalhadores (mais ou menos 2% de toda população).
A Argélia havia chegado à metade da década de 1960 com mais de doze milhões de habitantes, sendo que quinze por cento deles eram berberes... Os demais eram árabes.
As decisões políticas e econômicas da Argélia sempre dependeram da “porção setentrional” (essa área representa cinco por cento de todo o território, concentra a infraestrutura e o grosso da população – 5 habitantes/quilômetro quadrado)... Kapuscinski apresenta um exercício de reflexão que nos leva a conhecer um pouco da desigualdade social argelina nos primeiros anos após a sua independência:
                                                            Se a “receita média” dos argelinos fosse $100,
                                                            os habitantes do “resto do país” (do sul) viviam
                                                            com o equivalente a $30... Os habitantes de
                                                            Oran (cidade localizada no norte) com $200...
                                                            Os de Argel (a capital) com $275. 
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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