sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

É preciso entender que não havia apenas “um modelo” de cristão novo; a incrível história de dona Ana Rodrigues; dívida histórica com os “cristão novos” – Terceira Parte de síntese sobre a entrevista do historiador Angelo Assis à “História Viva”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/02/tribunais-do-santo-oficio-em-portugal.html antes de ler esta postagem:
No Brasil havia os “familiares da Inquisição”... Eles representavam o Santo Ofício em terras coloniais e tinham autorização para receber denúncias e investigá-las... Podiam até mesmo prender o denunciado e levá-lo ao tribunal de Lisboa, tal como se dava o procedimento adotado pelas visitações do Santo Ofício.
Assis nos chama a atenção sobre a generalização que se faz quando o assunto é ”cristão novo”. Alerta-nos que havia aqueles convertidos à força e que tinham uma formação arraigada pelos preceitos do judaísmo; outros eram os que pertenciam a gerações posteriores e que tiveram acesso ao “judaísmo possível”, o da convivência familiar em cujo seio preservavam-se os rituais celebrados com todo cuidado, embora sujeito a mudanças; e havia ainda os que, de fato, aceitaram o cristianismo católico.
Os “cristãos novos” foram se afastando do judaísmo tradicional porque, como tudo estava limitado ao lar, não havia como manter um culto padronizado... Não havia sinagogas ou rabinos... Disso resultou o “judaísmo possível”, passível de transformações ao longo do tempo. Normalmente as mulheres assumiam a condição de ensinar, além de cuidarem dos afazeres domésticos. Isso se tornou cada vez mais comum entre aquelas famílias devido ao fato de os maridos se ausentarem por longos períodos demandados pelas viagens de negócios... Essas situações proporcionaram o sincretismo, que se caracterizou por celebrações do “sábado judeu” em lares cujas famílias assistiam às missas católicas dominicais.
Então podemos dizer que os próprios “cristãos novos” não sabiam explicar o que é “ser judeu”... Nem os “cristãos velhos” sabiam identificá-los. Por mais contraditório que possa parecer, eram os padres da Igreja, ao orientarem seus fiéis sobre atos que podiam indicar o “modo de ser judeu” para que fossem feitas denúncias, que acabavam ensinando ao “cristão novo” um pouco do judaísmo. É claro que o que se propagava a respeito daquele “modo de ser” limitava-se a questões bem simples, como a aversão judaica à carne de porco, o enterro de seus mortos envolvidos num pano branco, ou a "guarda do sábado"...
Angelo Assis destaca a pesquisa que realizou sobre Ana Rodrigues, que chegou de Portugal com Heitor Antunes, seu marido. Seus pais haviam sido “batizados em pé”, portanto Ana tinha uma formação judaica, conhecia os rituais e preservava a tradição. Heitor Antunes prestou importantes serviços à Coroa, inclusive chegou à colônia com o terceiro governador geral, Mem de Sá.
Antunes organizou um engenho no Recôncavo Baiano, onde recebeu terras... Sua família prosperou, e o fato de ter casado os filhos com filhas de “cristãos velhos” revela o prestígio e consideração que gozava em meio à sociedade local... Ele organizava uma sinagoga em sua propriedade, e isso não era segredo para ninguém... Era um conselheiro que atuava como rabino... Depois de sua morte, Ana Rodrigues assumiu o seu lugar. Ela já contava cerca de 60 anos e o fato é digno de destaque, principalmente se levarmos em consideração que apenas recentemente uma mulher assumiu (pela primeira vez) uma sinagoga no Brasil.
Ao tempo da visitação de 1591, as autoridades inquisidoras chegaram até Ana devido a denúncias de seus familiares... Já fazia uns 20 anos que o marido havia morrido... Creditaram à sua velhice e demência o fato de ousar preservar os rituais judaicos... Sua confissão foi colhida num momento de muita fragilidade, pois estava acamada e adoecida... Confessou o criptojudaísmo... Foi enviada para o julgamento em Lisboa, porém morreu dois meses após a extenuante viagem.
Mesmo após a morte de dona Ana, o processo teve prosseguimento... E, dez anos depois, o resultado foi a sua condenação... O procedimento seguinte foi a exumação e a queima de seus ossos... Um retrato foi pintado e enviado para a igreja construída em sua antiga propriedade no Brasil. À porta do templo, todos poderiam visualizar Ana “cercada de demônios e queimando no inferno como herege”... Seus filhos e netos também sofreram processos, mas nenhum deles foi condenado... “Tornaram-se párias por serem filhos e netos da herege”.
Enquanto vigorou, a Inquisição em Portugal levou 1076 presos do Brasil à pena máxima (morte na fogueira). Só no século XVII, com a administração do marquês de Pombal é que o poder do Santo Ofício diminuiu. O marquês se inspirava no movimento Iluminista, que criticava a Inquisição... Foi ele quem esvaziou a importância do Santo Ofício ao eliminar a “distinção legal” entre “cristão novo” e “cristão velho”. Mais tarde, a Revolução do Porto (1820-1821) extinguiu os tribunais do Santo Ofício.
Logo após a emancipação política do Brasil (1822), a historiografia passou a levar em consideração a união de indígenas, brancos e negros, mas desprezou a contribuição de judeus e “cristãos novos” para a constituição de nossa sociedade...
Um abraço,
Prof.Gilberto

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