quarta-feira, 15 de novembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – pensando nos afazeres dos conhecidos da saudosa Lisboa e em Mary de Alexandria; o fado tornou-se mais triste até o completo emudecimento; uma repugnante árvore de espinhos; aos poucos a santa relíquia para a tia Patrocínio vai se definindo

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_15.html antes de ler esta postagem:

Enquanto caminhava, Teodorico pensava que, naquele mesmo momento, Adélia talvez estivesse aos beijos com o amante em sua alcova... Possivelmente se recordassem dele e o chamassem “carola”.
A tia Patrocínio certamente estava toda de preto e a caminho da missa de Santana... Distante dali estava o estabelecimento do Montanha, onde os criados preparavam sossegadamente as mesas para os clientes que tinham o bilhar como passatempo.
O Doutor Margaride devia estar acomodado no apartamento na Praça da Figueira... Devidamente equipado com seus óculos lia o “Diário de Notícias”.
Não sentia a falta de nenhum desses conhecidos... Era de Lisboa que sentia saudade.
É claro que não havia como se esquecer que a viagem levara-o a conhecer Maricoquinhas... Teodorico sabia o quanto isso lhe era precioso... Então pensou no que sua doce Mary estaria fazendo naquele instante... Talvez dedicando-se ao vaso de magnólias... Junto a ela estaria o gato dorminhoco no aconchegante veludo da cadeira. Bem podia ser que ela ainda suspirasse pelo “portuguesinho valente”.
Esse último pensamento levou-o a suspirar também... O fado que cantarolava fez-se mais triste.
(...)
De repente, viu-se num local desértico... Não conseguiu definir o quanto se distanciara do acampamento... Solidão e melancolia o dominaram... O ambiente o entristeceu um pouco mais.
É que à sua volta estavam pequenos montes desprovidos de qualquer vegetação. O caso é que tudo ali o levava a se sentir como que em refúgio propício aos mais radicais ascetas.
Tudo ali parecia arranjado para proteger o arbusto raro e repugnante que avistou. Não foi por acaso que no mesmo instante em que o viu, Teodorico esqueceu-se completamente do que vinha cantarolando desanimadamente.
O arbusto tinha um tronco grosso e parecia encravado na areia. Sua casca” tinha o lustre oleoso de uma pele negra”... Da parte alta lhe escapavam galhos viscosos, enegrecidos, contorcidos e espinhentos.
Era repugnante... Mas devia ter sua significância... Apesar do estranho aspecto, a árvore estava viva. O português tirou o capacete como que a render-lhe homenagem... Talvez fosse uma espécie ilustre!
Quem sabe? Talvez, de seu nono galho, um centurião romano tivesse extraído o fragmento utilizado para moldar a coroa que colocaram na cabeça de um carpinteiro da Galileia que havia sido condenado “por andar, entre quietas aldeias e nos santos pátios do templo, dizendo-se filho de Davi e dizendo-se filho de Deus, a pregar contra a velha religião, contra as velhas instituições, contra a velha ordem, contra as velhas formas!”
(...)
Mas é claro que um galho daqueles só podia ter se tornado divino!
Os altares cristãos o evidenciavam... Multidões de prostravam à passagem das imagens do Cristo flagelado e sarcasticamente coroado de espinhos!
Desde os tempos de “colégio dos Isidoros”, Teodorico aprendera (nas palestras de terças e sábados do “sebento Padre Soares”) que em determinada paragem da Judeia havia certa árvore que “era mesmo de arrepiar”.
Para o Raposo aquele estranho arbusto era a “sacratíssima árvore de espinhos”! Mas só podia ser!
(...)
A ideia que lhe veio à cabeça foi a de recolher um daqueles galhos (o mais “penugento e espinhoso”) para levá-lo à tia Patrocínio... Essa seria sua “relíquia fecunda em milagres”... A velha se apegaria com toda devoção àquela “santa relíquia”... Certamente uma das mais significativas!
Ela o teria na mais alta das considerações, já que o enviara à romagem salientando que esperava apenas uma “santa relíquia” dos santos lugares... E isso se ele mesmo considerasse que ela merecesse algo pelo que até então fizera por sua pessoa.
Teodorico não se esquecera disso... Foi “diante da magistratura e dos eclesiásticos” que ela lhe dissera aquelas palavras sem conter a lágrima que escorregou por trás de seus “óculos austeros”.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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